22 maio 2014

o meu amigo poeta (XLII)

Nos dias que se seguiram, a reabilitação sentimental do meu amigo poeta processa-se em moldes que poderiam ser caracterizados como normais. Isto, claro, se esquecermos o facto de que a normalidade de uma coisa, qualquer que ela seja, nunca a caracteriza. Enfim, outros assuntos. O que pretendo dizer é que, aos poucos e poucos, o meu amigo poeta lá foi regressando à normalidade. Isto, claro, se esquecermos o facto de que o meu amigo poeta nunca foi muito normal. Mas creio que massacrar neste momento o leitor com assuntos que o leitor decerto conhecerá já não será muito útil. Adiante, portanto. Resumamos: o meu amigo poeta ia recuperando. Tomou banho, fez a barba e cortou o cabelo. Arranjou outro trabalho. Ainda hoje não percebo muito bem como conseguia ele trocar de ofício com tanta frequência, mas deixemos ainda este assunto para um momento mais adequado. Trocou o whisky pelo bagaço e a sua dieta musical voltou a ser caracterizada pelo ecletismo anterior. E, talvez o mais importante de tudo, regressou ao seu real ofício. O que equivale a dizer que voltou a escrever os seus poemas. É digno de enfoque o facto de nenhum deles se debruçar sobre o tema do amor. Sucedeu antes o contrário. O meu amigo poeta, por aquela altura, andava de caneta em punho às voltas com a morte. À primeira vista, dir-se-ia que a escolha do tema não fazia grande sentido face ao contexto que ele vivia. Um segundo olhar, porém, pode revelar uma relação mais estreita entre os dois temas, nem que esta seja uma relação de contraste, conflito, ou radical oposição.

Devem ter passado um ou dois meses até que o Mendonça termina um dos seus ciclos. O que não tem nada de estranho, já que ele esculpia sempre por ciclos, mas constitui o motivo para que surgisse o momento de os mostrar ao público. Eu e o meu amigo poeta estávamos, claro, convidados para a exposição. Eu fui porque o Mendonça era meu amigo e porque as obras me interessavam. Quanto ao meu amigo poeta, pode dizer-se que os motivos da sua comparência no evento se deviam mais ao facto de ver nele uma oportunidade de comer e beber à vontade e sem gastar um tostão. Até porque grande parte da fauna que aí encontraria não lhe inspirava, segundo os seus próprios termos, grande confiança ou curiosidade. E, nisso, creio que o percebia tão bem então como hoje. A forma como as pessoas se comportam nesse tipo de ocasiões faz-se de tudo menos honestidade e genuinidade. A maior parte das pessoas faz o contrário: tenta parecer aquilo que não é. Tenta parecer mais sensível, mais entendida, mais moderna, mais crítica, mais opinativa do que no seu quotidiano. E as indumentárias que arrastam consigo mais não fazem do que sublinhar esta breve mudança de atitude. Normalmente, numa exposição, as pessoas têm tendência a arriscar mais, pelo simples motivo de que querem atrair um pouco mais de atenção. E os resultados não são bonitos.

Mas atalhemos. Às cinco e meia da tarde, lá estávamos, eu e o meu amigo poeta, na galeria. O Mendonça cumprimentou-nos com um sorriso largo. Trocámos abraços e palavras de circunstância, antes de ele nos confidenciar:

O vinho está ali, atrás daquela mesinha. Vejam as coisas e tal, que eu passo lá depois. O tinto é pomada. Aproveitem. Depois digam-me o que é que acharam. Das esculturas. Não do vinho, claro, que esse já sei que é bom.”

Aceitámos a recomendação. Demos a voltinha da praxe. O meu amigo poeta torceu o nariz à maior parte das esculturas.

Às vezes, não percebo onde é que este gajo tem a cabeça”, resmungava ele.

Vê lá isso depressa, para irmos ao vinho.”

Ninguém te obriga a veres isto à mesma velocidade que eu. Se tens pressa, acelera para aí.”

O meu amigo poeta franziu o sobrolho. Percorreu o resto das obras com uma despreocupação e uma ligeireza desconcertantes e, assim que o fez, estacionou ao lado da mesa das bebidas.

Devia estar já no quarto ou quinto copo, quando uma voz familiar o sobressaltou.


Por aqui?”, perguntou Rita, muito calmamente.

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