A segunda vez que o meu amigo poeta pôs os
olhos naquela mulher coincide com a primeira vez que eu a vi. Já não sei bem a
que propósito, mas estávamos a jantar em casa do Mendonça. Até ali, nem eu, nem
o meu amigo tínhamos participado muito activamente nas conversas, pelo simples
motivo de que estas eram aborrecidíssimas. Um colega de curso do Mendonça ia
monopolizando a tertúlia, proferindo banalidade atrás de banalidade. Era um
tipo com uma camisa indescritível, pois continha nuances de todas as cores do
arco-íris num padrão muito pouco agradável. As pontas do bigode fino e engomado
apontavam para cima e os pequenos óculos quadrados não ajudavam.
Um discurso particularmente enfadonho que o
sujeito fez versava sobre a bossa nova e a sua incrível beleza exótica, mas
também se fartou de comentar muitas outras coisas que considerava de valor
artístico extremamente elevado, e relativamente às quais eu e o meu amigo poeta
não podíamos estar mais desinteressados. O resto do tempo, como já seria de
esperar, uma vez que se tratava de um artista,
passou-o a discursar sobre a sua própria obra, num tom de auto-elogio
verdadeiramente embaraçoso. Recordo-me, por exemplo, de o ter ouvido dizer que
achava a forma como o surrealismo afectara a progressão da sua obra um processo
positivamente fascinante. Resumindo, já não o podíamos ouvir. Apenas Elisa, uma
donzela com ar de barbie, dotada de um par de pernas exemplar e pouca massa
cinzenta, o continuava a ouvir embevecida, contentíssima por poder privar com
um verdadeiro criador.
Quanto ao meu amigo poeta, por vezes não
conseguia evitar soltar alguns rosnados, felizmente em tom baixo, mas lá se
continha, optando por encher de novo o seu copo de vinho e voltar novamente o
seu olhar para o peixe grelhado que tinha diante de si, evitando assim
contemplar o triste espectáculo que se desenrolava à sua frente. E, quanto a
mim, fez muito bem. Dadas as condições, o peixe e o vinho eram mesmo as únicas
coisas que se aproveitavam ali.
Até que a campainha e Mendonça se ergueu de
repente, certamente agradado com a possibilidade de deixar de ouvir o seu
colega durante alguns segundos.
“Ah! Deve ser o Ramalho! Só um momento…”
Desapareceu da sala para ir abrir a porta. O
seu colega aproveitou para referir que já há muito que não participava numa
tertúlia tão interessante, ao que o meu amigo poeta respondeu com um aceno de
cabeça pouco convicto antes de voltar a olhar para o prato e espetar o garfo
com força contra o lombo do peixe, sobressaltando-me.
Depois, o Mendonça regressou. Com ele vinha
também o Ramalho, que também já conhecíamos. Dava aulas de filosofia. Com eles,
entrou ainda uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelo curto, magra. Tinha
feições severas, um pouco masculinas para meu gosto, e uma pose algo rígida.
Creio que, já nesse momento, não gostei dela. Mas reparei que o meu amigo poeta
corou quando a viu entrar.
O Mendonça, empenhado no seu papel de
anfitrião, tratou de fazer as apresentações. A mulher chamava-se Rita. Quando
Mendonça apresentou o meu amigo poeta, Rita interrompeu-o.
“Nós já nos conhecemos…”, disse ela, com uma
inflexão interrogativa, como se à espera de uma confirmação.
“Parece que sim”, respondeu o meu amigo poeta.
“Já sei”, disse ela, “a tabacaria.”
“Pois”, disse o meu amigo poeta, com um
sorriso amarelo, “a tabacaria.”
“Conseguiu ler aquilo tudo?”
O meu amigo poeta não chegou a responder. O
Mendonça, que não tinha percebido nada, interrompeu-o:
“Claro que sim. Este aqui lê que nem um
desalmado.” E acrescentou, em tom mais sério, como se explicasse o que acabara
de dizer: “ele é poeta.”
“Que interessante”, disse Rita, com uma
pontinha de sarcasmo que quase ninguém percebeu.
“Não é nada interessante, menina”, disse o meu
amigo poeta. “Chegou a comprar os cachimbos?”
“Não, não. Não sei se lhe cheguei a dizer, mas
não fumo cachimbo.”
Depois, sentaram-se os três. O resto da
refeição decorreu tal como estava a decorrer antes. Verificava-se apenas uma
pequena mudança. Enquanto o escultor falava, o meu amigo poeta olhava menos
para o peixe e observava de soslaio aquela mulher. Para minha surpresa, ela
olhava-o também.