Nos dias que se
seguiram, a reabilitação sentimental do meu amigo poeta processa-se
em moldes que poderiam ser caracterizados como normais. Isto, claro,
se esquecermos o facto de que a normalidade de uma coisa, qualquer
que ela seja, nunca a caracteriza. Enfim, outros assuntos. O que
pretendo dizer é que, aos poucos e poucos, o meu amigo poeta lá foi
regressando à normalidade. Isto, claro, se esquecermos o facto de
que o meu amigo poeta nunca foi muito normal. Mas creio que massacrar
neste momento o leitor com assuntos que o leitor decerto conhecerá
já não será muito útil. Adiante, portanto. Resumamos: o meu amigo
poeta ia recuperando. Tomou banho, fez a barba e cortou o cabelo.
Arranjou outro trabalho. Ainda hoje não percebo muito bem como
conseguia ele trocar de ofício com tanta frequência, mas deixemos
ainda este assunto para um momento mais adequado. Trocou o whisky
pelo bagaço e a sua dieta musical voltou a ser caracterizada pelo
ecletismo anterior. E, talvez o mais importante de tudo, regressou ao
seu real ofício. O que equivale a dizer que voltou a escrever os
seus poemas. É digno de enfoque o facto de nenhum deles se debruçar
sobre o tema do amor. Sucedeu antes o contrário. O meu amigo poeta,
por aquela altura, andava de caneta em punho às voltas com a morte.
À primeira vista, dir-se-ia que a escolha do tema não fazia grande
sentido face ao contexto que ele vivia. Um segundo olhar, porém,
pode revelar uma relação mais estreita entre os dois temas, nem que
esta seja uma relação de contraste, conflito, ou radical oposição.
Devem ter passado um
ou dois meses até que o Mendonça termina um dos seus ciclos. O que
não tem nada de estranho, já que ele esculpia sempre por ciclos,
mas constitui o motivo para que surgisse o momento de os mostrar ao
público. Eu e o meu amigo poeta estávamos, claro, convidados para a
exposição. Eu fui porque o Mendonça era meu amigo e porque as
obras me interessavam. Quanto ao meu amigo poeta, pode dizer-se que
os motivos da sua comparência no evento se deviam mais ao facto de
ver nele uma oportunidade de comer e beber à vontade e sem gastar um
tostão. Até porque grande parte da fauna que aí encontraria não
lhe inspirava, segundo os seus próprios termos, grande confiança ou
curiosidade. E, nisso, creio que o percebia tão bem então como
hoje. A forma como as pessoas se comportam nesse tipo de ocasiões
faz-se de tudo menos honestidade e genuinidade. A maior parte das
pessoas faz o contrário: tenta parecer aquilo que não é. Tenta
parecer mais sensível, mais entendida, mais moderna, mais crítica,
mais opinativa do que no seu quotidiano. E as indumentárias que
arrastam consigo mais não fazem do que sublinhar esta breve mudança
de atitude. Normalmente, numa exposição, as pessoas têm tendência
a arriscar mais, pelo simples motivo de que querem atrair um pouco
mais de atenção. E os resultados não são bonitos.
Mas atalhemos. Às
cinco e meia da tarde, lá estávamos, eu e o meu amigo poeta, na
galeria. O Mendonça cumprimentou-nos com um sorriso largo. Trocámos
abraços e palavras de circunstância, antes de ele nos confidenciar:
“O vinho está
ali, atrás daquela mesinha. Vejam as coisas e tal, que eu passo lá
depois. O tinto é pomada. Aproveitem. Depois digam-me o que é que
acharam. Das esculturas. Não do vinho, claro, que esse já sei que é
bom.”
Aceitámos a
recomendação. Demos a voltinha da praxe. O meu amigo poeta torceu o
nariz à maior parte das esculturas.
“Às vezes, não
percebo onde é que este gajo tem a cabeça”, resmungava ele.
“Vê lá isso
depressa, para irmos ao vinho.”
“Ninguém te
obriga a veres isto à mesma velocidade que eu. Se tens pressa,
acelera para aí.”
O meu amigo poeta
franziu o sobrolho. Percorreu o resto das obras com uma
despreocupação e uma ligeireza desconcertantes e, assim que o fez,
estacionou ao lado da mesa das bebidas.
Devia estar já no
quarto ou quinto copo, quando uma voz familiar o sobressaltou.
“Por aqui?”,
perguntou Rita, muito calmamente.