“Por aqui?”, perguntou Rita,
muito calmamente.
Curiosamente, a primeira reacção
do meu amigo poeta, afinal um homem da palavra, foi absolutamente
física. Primeiro, pôs-se hirto e pálido, quase translúcido, como
se o sangue todo lhe houvesse abandonado o corpo num único instante.
Depois, o rosto avermelhou-se e a respiração, que antes quase
estancara, rearrancou com violência.
Ela olhava-o com a expressão
fechada que usava habitualmente, com uma indiferença e uma
serenidade que chegavam a ser perturbantes. Perante o silêncio do
meu amigo poeta, insistiu:
“Tudo bem?”
É neste momento que o meu amigo
poeta explode, ou melhor, tenta explodir, porque, apesar de abrir a
boca e de a vontade de gritar ser nítida, não foram palavras nem
berros o que saiu do seu corpo. Começa a gesticular com largura,
intensidade, irregularidade, em lanços bruscos e desconexos,
rapidamente interrompidos, enquanto balbucia e balbucia coisas
ininteligíveis, um homem no pico da sua desorientação. Depois
desiste e bufa e ronca. Sim, isso, o meu poeta bufou muito e com
muita força, tanto que acabou por provocar no rosto de Rita o surgir
de uma expressão genuinamente preocupada, ou pelo menos assim o
pareceu, porque ela franziu o sobrolho antes de perguntar:
“Estás bem?”
E nisto o meu amigo poeta pôs-se
muito sério, numa tentativa frustrada de manter a dignidade e
simular alguma indiferença perante aquela terceira afronta, a
dignidade e a indiferença que nele não existiam precisamente por
causa daquela mulher. Eram sobretudo os olhos que o traíam, tremiam
e disparavam ódio, sem conseguirem despregar-se do rosto dela. Assim
que falou, o estado alterado em que se encontrava tornou-se ainda
mais evidente.
“Foda-se”, disse o meu amigo
poeta.
Rita arregalou os olhos por um
instante, antes de abanar a cabeça para os lados, incrédula. Desta
vez, foi ela que não conseguiu falar.
Fez-se um silêncio
constrangedor. Neste momento, já toda a gente que ali estava olhava
para os dois da mesma forma que olharia para os animais do jardim
zoológico, em exposição dentro das respectivas jaulas.
“Foda-se”, repetiu o meu
amigo poeta.
E saiu dali a correr.
Rita não soube o que fazer.
Olhou para mim como se eu pudesse ajudar, mas eu não sabia como.
Abri os braços e encolhi os ombros, numa expressão de impotência.
“Desculpa”, disse eu, porque
ela não parava de olhar para mim.
“Não faz mal. A culpa é
minha”, disse ela.
Tentei ajudar. A cara dela,
sempre como se estivesse a pedir a ajuda, era difícil de suportar
sem reagir. Perguntar-lhe se não queria ir fumar um cigarro e
apontar para a saída foi o melhor que consegui improvisar. Ela
aceitou. Disse que sim, claro que sim, e a expressão era de alívio,
por poder fugir daquela multidão de olhares de esguelha. Saímos. Lá
fora, acendemos cigarros. Passámos alguns instantes a fumar em
silêncio.
“Bem. Calculo que ele me deve
odiar neste momento”, disse Rita.
“Não te preocupes. Isso
passa-lhe. Sempre teve queda para dramatismos”, respondi.
“Eu não queria que as coisas
tivessem acontecido desta maneira”, continuou ela. “Não queria
mesmo.”
Era a primeira vez que a via
assim. Afinal, ela não é um bloco de gelo, pensei eu. Queria
percebê-la. Hesitei um pouco antes de perguntar:
“Porque é que fizeste aquilo?”
“Aquilo?”
“Sim. Desaparecer assim.”
“É complicado”, disse ela.
Deu uma passa no cigarro, pensativa. “Ele assusta-me um bocado.”
“Claro. É maluco.”
Rita deixou escapar uma
gargalhada.
“Não! Dessa parte até gosto.”
“Então? Qual é a parte da
loucura dele que te preocupa?”
“Acho que é a parte de ele
precisar demasiado de mim. De precisar demasiado de me ter por
perto.”
Foi neste momento que uma voz,
vinda de trás de nós, nos interrompeu.
“Não sei o que é que lhe deu
essa ideia, menina.”
O meu amigo poeta estava sentado
na soleira da porta do edifício contíguo à galeria. Pelos vistos,
tinha ouvido a conversa toda, até porque estava a olhar para nós
com ar de quem se sente muito entretido.
“Estiveste aí durante este
tempo todo?”, perguntou Rita. “E, por amor de Deus, podes parar
de me tratar por menina o tempo todo? Já cansa.”
“Estive, sim, menina”,
respondeu o meu amigo poeta com um sorriso de troça estampado no
rosto.
“E não sabias dizer nada?”
“Para quê? Estava a gostar.
Além disso, não tenho grande prazer em interromper conversas
alheias.”
“Pelos vistos, ouvi-las não te
incomoda assim tanto.”
“É. Especialmente quando são
sobre mim.”
“Sobre ti? Como é que
consegues ser tão egocêntrico?”
Houve uma pausa. O meu amigo
poeta mudou o ângulo de ataque.
“Tens uma maneira muito
estranha de pedir desculpa”, disse ele. “E continuo a não
perceber muito bem porque é que achas que preciso demasiado de ter
perto.”
“É assim tão difícil
entender?”
“É. Não tem grande relação
com a realidade.”
“Ai não?”
“Não.”
“E aquela conversa toda de
quereres que me mudasse para tua casa? Não tem nada a haver com o
assunto, claro.”
O meu amigo poeta começava a
perder as estribeiras. Pôs-se de pé. Rita aproximou-se dele. Mais
uma vez, eu não sabia bem o que fazer. Provavelmente, teria feito
melhor em deixá-los sozinhos, mas estava tão confuso que a ideia
nem me passou pela cabeça.
“Uma coisa é querer ter uma
pessoa por perto. Outra coisa é precisar dela”, disse o meu amigo
poeta.
“Talvez. Mas não foi nada
disso que se passou”, respondeu Rita.
“Não sei o que é que te deu
essa ideia.”
“Talvez a forma como insististe
e insististe e insististe.”
“Não sei se isto conta para
alguma coisa, mas tenho uma vaga ideia de teres concordado.”
Rita suspirou, farta daquela
conversa. A sua expressão tornou-se mais focada, mais calma.
“Sabes qual é a tua sorte?”,
perguntou ela.
“Sorte? Qual sorte? Não, não
estou a ver.”
“É que eu também dei por mim
a precisar de ti. Apesar de seres um idiota com as mulheres.”
“Nesse caso, menina, talvez
tivesse sido melhor não ter andado a brincar com os meus
sentimentos.”
“A brincar com os teus
sentimentos!”, respondeu ela, com uma gargalhada irada. “Vês
como eu tenho razão?”
“Não, não estou a ver.”
“Uma frase tão imbecil só
podia ser dita por alguém que precisa mesmo de alguém a seu lado.”
“Na melhor das hipóteses,
Rita, precisei. Seja o que for, faz parte do passado.”
“Cala-te, estúpido! Achas que
sou assim tão burra?”
“Calo-me? E quando é que eu te
cha...?”
O meu amigo poeta não conseguiu
terminar o seu protesto. Rita empurrou-o contra a porta, lançou-se a
ele, agarrou-o e espetou a sua boca contra a dele. Ele ainda tentou
resistir, mas o fracasso foi quase imediato. Daí a pouco, era tal a
confusão de línguas, saliva, roçares de pernas e virilhas, mãos
dele no corpo dela e mãos dela no corpo dele, que me decidi,
finalmente, a regressar ao interior da galeria.
Já Rita e o meu
amigo poeta, mais ninguém os viu nessa noite. Felizmente.