Foi num dos Invernos mais chuvosos que vivi.
Uma coisa terrível. Chuva ininterrupta durante dias, semanas, meses. Nesse ano,
o estado normal de qualquer pessoa implicava quase sempre o facto de ter a
roupa completamente encharcada. Não havia mesmo maneira de fugir. Era
impossível ficar à espera e o vento forte que se fazia sentir quase
constantemente tornava o uso do guarda-chuva uma mera formalidade. Toda a gente
andava mal disposta. As pessoas andavam mais caladas do que era habitual. Quase
ninguém abria a boca se não fosse para protestar contra a merda do tempo.
Atravessei a rua, todo encolhido debaixo do
guarda-chuva. Tentei abrigar-me sem grande sucesso. As calças e os sapatos já
estavam todos ensopados. Eram seis da tarde, mas já não havia luz nenhuma. A
densa cortina formada pela constante queda de água parecia obstruir tudo,
cercando-me com o seu ruído contínuo.
Toquei à campainha e esperei alguns segundos.
A porta abriu-se, entrei e subi até ao último andar. Bati à porta. O meu amigo
poeta veio abri-la poucos segundos depois.
“Entra, entra depressa”, disse ele, com os
olhos arregalados e um enorme sorriso, “tens mesmo de ver isto, aposto que
nunca viste nada igual.”
Assim que entrei, deparei-me com uma visão
surreal.
Espalhados por toda a sala do meu amigo poeta,
estavam tachos, panelas e baldes. A mobília estava toda tapada com coberturas
de plástico. Um pouco por todo o tecto, pequenas gotas de água aumentavam
progressivamente de tamanho antes de cair. O som da sua queda nos recipientes
era quase tão regular como o dos movimentos de um ponteiro de relógio, mas os
ruídos que provocavam eram bastante diversos entre si, devido às diferentes
superfícies em que embatiam. Formavam uma estranha sinfonia. Uma espécie de
xilofone infernal, um assalto contínuo aos sentidos, capaz de conduzir qualquer
pessoa à loucura.
No meio da sala, por entre os tachos, as
panelas e os baldes, o meio amigo poeta tinha improvisado um pequeno posto de
trabalho. A secretária e a sua cadeira estavam sobre o tapete, bem no centro da
divisão, naquele minúsculo pedaço de espaço em que não chovia. No tampo da
secretária, muito direitinha, estava um pequeno monte de papéis empilhados.
Espantosamente, o meu amigo amigo poeta olhava
para aquilo tudo como uma criança. Tinha um sorriso inocente no rosto. Parecia
verdadeiramente deliciado, quase divertido, com a pequena catástrofe que se
desenrolava à sua frente. Não sei bem se queria mesmo perceber o que se passava
dentro da cabeça dele, mas fiz a pergunta:
“É impressão minha, ou estás todo contente com
esta merda?”
“Não gostas?”
“Estás doido? Isto é um desastre, caralho!
Quando é que arranjas isto?”
O meu amigo poeta encolheu os ombros.
“Ainda não sei. Acho que vou esperar que o mau
tempo passe.”
“Estiveste a beber?”
O meu amigo poeta riu-se. Pouco ligou ao que
lhe disse. Estava mesmo interessado era no espectáculo que tinha à sua frente.
“É maravilhoso, isto”, disse ele, quase
comovido, “nunca na vida experimentei uma coisa assim. Isto é lindo. Mesmo
lindo.”
Desisti de tentar convencê-lo a arranjar o
telhado. Não valia a pena.
“Isto é lindo”, repetiu o meu amigo poeta.