27 setembro 2012

o meu amigo poeta (XXIII)



Foi num dos Invernos mais chuvosos que vivi. Uma coisa terrível. Chuva ininterrupta durante dias, semanas, meses. Nesse ano, o estado normal de qualquer pessoa implicava quase sempre o facto de ter a roupa completamente encharcada. Não havia mesmo maneira de fugir. Era impossível ficar à espera e o vento forte que se fazia sentir quase constantemente tornava o uso do guarda-chuva uma mera formalidade. Toda a gente andava mal disposta. As pessoas andavam mais caladas do que era habitual. Quase ninguém abria a boca se não fosse para protestar contra a merda do tempo.

Atravessei a rua, todo encolhido debaixo do guarda-chuva. Tentei abrigar-me sem grande sucesso. As calças e os sapatos já estavam todos ensopados. Eram seis da tarde, mas já não havia luz nenhuma. A densa cortina formada pela constante queda de água parecia obstruir tudo, cercando-me com o seu ruído contínuo.

Toquei à campainha e esperei alguns segundos. A porta abriu-se, entrei e subi até ao último andar. Bati à porta. O meu amigo poeta veio abri-la poucos segundos depois.

“Entra, entra depressa”, disse ele, com os olhos arregalados e um enorme sorriso, “tens mesmo de ver isto, aposto que nunca viste nada igual.”

Assim que entrei, deparei-me com uma visão surreal.

Espalhados por toda a sala do meu amigo poeta, estavam tachos, panelas e baldes. A mobília estava toda tapada com coberturas de plástico. Um pouco por todo o tecto, pequenas gotas de água aumentavam progressivamente de tamanho antes de cair. O som da sua queda nos recipientes era quase tão regular como o dos movimentos de um ponteiro de relógio, mas os ruídos que provocavam eram bastante diversos entre si, devido às diferentes superfícies em que embatiam. Formavam uma estranha sinfonia. Uma espécie de xilofone infernal, um assalto contínuo aos sentidos, capaz de conduzir qualquer pessoa à loucura.

No meio da sala, por entre os tachos, as panelas e os baldes, o meio amigo poeta tinha improvisado um pequeno posto de trabalho. A secretária e a sua cadeira estavam sobre o tapete, bem no centro da divisão, naquele minúsculo pedaço de espaço em que não chovia. No tampo da secretária, muito direitinha, estava um pequeno monte de papéis empilhados.

Espantosamente, o meu amigo amigo poeta olhava para aquilo tudo como uma criança. Tinha um sorriso inocente no rosto. Parecia verdadeiramente deliciado, quase divertido, com a pequena catástrofe que se desenrolava à sua frente. Não sei bem se queria mesmo perceber o que se passava dentro da cabeça dele, mas fiz a pergunta:

“É impressão minha, ou estás todo contente com esta merda?”

“Não gostas?”

“Estás doido? Isto é um desastre, caralho! Quando é que arranjas isto?”

O meu amigo poeta encolheu os ombros.

“Ainda não sei. Acho que vou esperar que o mau tempo passe.”

“Estiveste a beber?”

O meu amigo poeta riu-se. Pouco ligou ao que lhe disse. Estava mesmo interessado era no espectáculo que tinha à sua frente.

“É maravilhoso, isto”, disse ele, quase comovido, “nunca na vida experimentei uma coisa assim. Isto é lindo. Mesmo lindo.”

Desisti de tentar convencê-lo a arranjar o telhado. Não valia a pena.

“Isto é lindo”, repetiu o meu amigo poeta.

o meu amigo poeta (XXII)



O meu amigo poeta distraía-se com facilidade. Não estranhei por isso que certa tarde, ao vê-lo irromper pelo café com os cabelos completamente desgrenhados, de olhos raiados de vermelho, sentando-se e clamando por um bitoque perante a estupefacção da restante clientela, o surto se devesse ao facto de ter perdido outra vez as chaves de casa. Era coisa que lhe acontecia com frequência. Por vezes, reapareciam semanas depois, outra vez demoravam mais alguns meses a ser encontradas. O recorde era de dois anos e quatro meses. E pronto. Acontecera novamente. Dessa vez, contudo, o meu amigo poeta também não tinha pago a conta do telefone. Vira-se assim obrigado a passar duas semanas a comer atum e salsichas enlatados, até ao momento em que a senhoria lhe veio exigir, como era hábito, que lhe pagasse a renda que tinha em atraso.

“Estava a ver que a velha nunca mais chegava”, comentou ele, “já só lá tenho uma latita de feijão…”

Numa outra tarde, pouco tempo depois, viu-se o meu amigo poeta envolvido na conversa mais aborrecida do mundo. Estava rodeado de um conjunto dos seus admiradores (na sua maioria, aspirantes a poetas, amantes das artes com prateleiras repletas de colecções de Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Alexandre Herculano, e outros exemplares dessa estranha espécie que vê a poesia como coisa finíssima) e parecia não haver forma de os tipos pararem debitar frivolidade atrás de frivolidade. Tentou distrair-se, mas, dessa vez, não conseguiu. Aproveitando com agilidade uma das raras pausas da tertúlia, contou-lhes a história das duas semanas em que fora prisioneiro no seu próprio domicílio. Os seus admiradores, claro, adoraram o relato. Coisa que o deve ter irritado ainda mais, porque, ao contar-me o episódio, o meu amigo poeta confidenciou-me que pensou para consigo que tinha de fazer uma reciclagem urgente ao seu séquito. Depois concluiu:

“Às vezes, tenho saudades desses tempos”, disse ele, sorrindo placidamente, enquanto passava os olhos pela plateia. Não se despediu. Pôs-se de pé e foi-se embora com a maior das despreocupações.

Claro que os admiradores do meu amigo poeta não perceberam que se estava a referir ao prazer que a sua companhia lhe inspirava. Continuavam a adorá-lo tanto como antes.

24 setembro 2012

o meu amigo poeta (XXI)



O meu amigo poeta não se safava muito bem com as mulheres. Dizia que não tinha o dom de perceber os convites do sexo oposto.

“Essa coisa de trocar olhares e mostrar o ombro e mexer nos cabelos não é mesmo para mim. Só me deixam mais confuso”, disse ele certa noite a uma mulher. “Lembro-me de uma ocasião em que uma gaja me perguntou, depois de uma longa conversa, se eu não quereria por acaso passar por casa dela. E eu respondi que não, que tinha outras coisas para fazer. Não queria ver a casa dela nem pelo caralho! Só depois é que me explicaram o que ela queria.”

A mulher tinha longos cabelos negros, olhar feroz, pernas longas. Uma silhueta que parecia ter sido desenhada por encomenda. Lábios carnudos. Voz suave. E era expressiva, com uma pose de desafio que não se destinava a afastar. Mais importante ainda, estava decidida a levar o meu amigo poeta para a cama, até o ter ouvido pronunciar-se sobre aquele assunto.

O meu amigo relatou-me o final do episódio, num momento em que nos encontrávamos a sós, a salvo da atenção e comentários alheios. Contou-me que, mal acabou de ouvir aquilo, a mulher se levantou e encolheu os ombros. Disse-lhe que tinha muita pena, mas não tinha tempo para aquelas merdas.

“Fiquei desolado outra vez. De rastos. Pensava mesmo que ela queria dar uma pinadela, man”, concluiu o meu amigo poeta. “Pelos vistos, estava enganado”, concluiu ele, pensativo.

Ficámos em silêncio durante um momento. O meu amigo poeta continuava, certamente, a tentar entender o que se tinha passado, como era possível que as coisas acabassem por ter quase sempre um desfecho assim. Eu, por outro lado, tentava encontrar uma maneira de o iluminar um pouco acerca da matéria de que nos ocupávamos.

Olhei para ele. Aquilo dava dó: uma das criaturas mais inteligentes que já conheci, tão transtornada por um problema tão prosaico.

“Deixa lá”, disse eu. “Pode acontecer a qualquer um.”

O meu amigo poeta era um caso perdido.

20 setembro 2012

o meu amigo poeta (XX)



Certa vez, decidiram agraciar o meu amigo poeta com uma distinção da treta. Um desses embustes de que os políticos se servem para fingir que se incomodam com o estado das artes nacionais, quando, na verdade, só se preocupam com os efeitos que o acto de entregar prémios ou gabar a arte de alguém terá nas urnas. Queriam torná-lo comendador da ordem do Infante, ou qualquer merda parecida, devido aos seus méritos literários, inestimável contributo para as letras nacionais e mundiais e outras coisas do género.

Ser-lhe-ia concedida a honra em questão pelo Presidente da República em pessoa (que, provavelmente, nunca leu um livro que não fosse necessário para fazer uma cadeira de liceu ou faculdade, se tanto), em cerimónia pomposa. E o meu amigo poeta aceitou, mais por causa da cerimónia do que pela graça em questão. Nunca foi rico e, por vezes, chegava a passar fome. Assim, viu na imbecil festividade uma óptima oportunidade para encher o bandulho com comida de rico. Havia também uma certa vaidade entre os motivos para marcar presença, mas essa, o meu amigo poeta nunca havia de admitir. O que, aqui entre nós, só é prova ainda mais esclarecedora da dimensão do seu ego.

Quis assim o destino que, num solarengo domingo de Verão, se deslocasse o meu amigo poeta à capital para que se consumasse o acto. Vestiu o seu fato menos estragado, meteu-se no autocarro e lá chegou ao palacete onde a coisa se desenrolaria. Contou-me que comeu por três ou quatro. Provou as bebidas todas. “Vinhos bastante bons, licores assim assim”, disse ele em jeito de apreciação quando me fez o relato. Posou para as fotografias. Falou com as pessoas e tudo. Civilizadamente, ou seja, mentindo muito e sorrindo mais do que de facto desejaria, sempre sem chegar a elevar o tom de voz.

E lá chegou o momento da condecoração. O meu amigo poeta esperou pacientemente, como se estivesse na bicha do supermercado, que os restantes agraciáveis fossem agraciados. Estava um calor dos diabos e, ainda para mais, com os copos que bebera, o meu amigo poeta fartou-se de suar. Ainda assim, resistiu como um herói e não despiu o blazer, até que chegou o momento em que o Presidente lhe colocaria a medalha ao peito e apertaria de seguida a sua mão, trocando com ele algumas palavras de circunstância. Contudo, Sua Excelência não tinha noção de uma coisa: é que o meu amigo nunca foi muito de circunstâncias. Sabia manter a compostura, mas só se lhe interessasse mantê-la. De modo que, quando o Presidente lhe disse: “é um prazer imenso conceder esta honra a um dos melhores poetas da actualidade”, o meu amigo não foi em modas. Falou-lhe no tom mais afável deste mundo, com um largo sorriso, mantendo todo o decoro exigido pela circunstância.

“Queria-lhe dizer uma coisa”, disse o meu amigo poeta enquanto lhe apertava a mão.

“Ai sim? Diga lá!”

“Um poeta como eu reconhece o cheiro de uma mentira a quilómetros de distância. Ao seu redor, o fedor é tão forte que era capaz de fazer a pior das lixeiras municipais assemelhar-se a uma plantação de rosas.”

Cumprida que estava a cerimónia, o meu amigo poeta fez a viagem de regresso. Ligaram-lhe da editora no dia seguinte.

“Procure uma editora nova. Os seus livros vão sair de circulação. Ordens superiores, temos muita pena”, disse uma voz dentro do telefone. E assim foi. De modo que hoje, quando o meu amigo poeta tem sorte, fazem-se edições de cento e cinquenta exemplares das suas obras.

Mas a injustiça não foi assim tão grande. Ainda hoje, na mesinha de cabeceira do meu amigo poeta, se pode ver uma fotografia em que o Presidente, com um sorrisinho muito amarelo, lhe aperta a mão.

“Sempre que acordo indisposto, olho para aquela fotografia e o dia deixa de me parecer uma tortura”, diz frequentemente o meu amigo poeta, de olhos brilhantes como os de uma criança, “mas ando com ideias de mudá-la para a casa de banho, para a pendurar mesmo de frente para a sanita. Assim, quando me sentar, já não há hipótese de me esquecer do que vim fazer ali.”

o meu amigo poeta (XIX)



O meu amigo poeta tem por hábito contar histórias de casa de banho. Não quero com isto dizer que sejam histórias semelhantes às inscrições gravadas nas portas dos mais requintados W.C.´s. São mais uma espécie de relato daquilo a que o meu amigo assiste quando se torna imperativo mudar a água das azeitonas entre duas cervejas. Curiosamente, costuma também levá-las lá para dentro. É desconfiado e conhece bem a corja de beberrões que o acompanha nas suas saídas nocturnas. Sabe que o copo estaria vazio se não tomasse precauções. Mas, enfim, aquilo que caracteriza estes relatos é o grau de detalhe que o meu amigo poeta consegue inculcar-lhes.

Um exemplo funcionará talvez melhor para ilustrar o caso. Recuemos ao dia em que o ouvi proferir a seguinte descrição, numa mesa de sete onde eu mesmo me incluía também, a meio da refeição. Lembro-me perfeitamente de que comíamos uma feijoada em que os chispes e orelhas de porco abundavam.

“Estava meio bêbedo”, começou o meu amigo poeta, “e fui à casinha, como qualquer pessoa faria. Mas, pelos vistos, escolhi mal o urinol. Estava ocupado a tentar acertar no ralo daquela belíssima peça de louça, como certamente imaginais, quando outro tipo entra, afligido da mesma necessidade fisiológica que me levara ali. E gerou-se logo ali, como por vezes acontece, um certo clima de tensão, não sei se estão a ver. Enfim, vicissitudes da condição de macho. Eu dei um jeitinho para ele passar, mas naquele bar, por causa de a porta estar apontada de lado para o urinol, não há forma de o cliente seguinte ocupar o seu lugar sem que esse jeitinho seja maior do que num W.C. comum. Por outras palavras, tive de lhe mostrar o mangalho, porque não havia outra maneira. Fiquei ali, com a pila na mão bem à mostra, enquanto o gajo me contornava para ocupar o seu posto. O gajo olhou para mim meio escandalizado e eu olhei para ele como se quisesse pedir desculpa. E ele lá começou a fazer o serviço, que já tinha adiado mais do que convém. No urinol ao lado do meu, que naquela casa-de-banho só há dois. E quando o gajo põe a dele de fora, não consegui evitar e olhei para a dele também. Opá, coisa que acontece por instinto, não é? Depois veio o choque. Eu juro aqui a pés juntos que o gajo tinha a gaitinha mais pequena e, ao mesmo tempo, mais feia que eu alguma vez vi. Era terrível. Minúscula e toda enrugada, de tal forma que parecia que só se via o escroto do gajo e o tudo de enormes cabelos que a rodeava. Com licença.”

Nisto, o meu amigo poeta parou para comer um pouco da sua feijoada, que começava já a arrefecer. Já éramos só quatro à mesa. Não deve ter reparado, pois continuou a sua narrativa com o mesmo entusiasmo:

“Bem, o gajo percebeu que eu vi aquela coisa que quase parecia o centro de uma flor no meio de tanto pêlo, e pôs-se logo todo nervoso, vermelho que nem um tomate e a tremer todo. Parecia um depressivo à beira da explosão. De tal forma que o fluxo do mijo parou. Só saíram mais umas pinguinhas, apesar de o tipo ainda agora ter começado. O gajo sacudiu aquilo. Nem percebo como é que ele fez a coisa, mas imagino que deva ter sujado as mãos todas de mijo, porque não há maneira, não é? Um gajo tem de ter espaço de manobra para não entrar em contacto com a urina, pá! E o tipo ali a abanar a cabecita, porque aquilo era só cabecita, só pode ter ficado mesmo todo borrado nas mãos. Borrado, que é como diz o outro, é só para facilitar, ele ficou foi mijado nas mãos como se tivesse apontado aquela gaita feia para elas enquanto estava a deitar as pinguinhas, ou o caneco!”

O meu amigo poeta parou para meter nova garfada à boca. E concluiu:

“Quando cheguei a casa, tive de escrever sobre aquilo. Era superior a mim. Não havia nada de pilas feias, nem W.C. porco, nem cheiros de fezes e urina. Escrevi sobre a humilhação do homem pelo homem e não sobre outra coisa qualquer, percebem?...”

Olhou finalmente ao seu redor. Quase só viu cadeiras vazias. Eu era o único que continuava ali.

“Pronto, era só isso que eu queria contar”, concluiu, cabisbaixo, o meu amigo poeta.

17 setembro 2012

o meu amigo poeta (XVIII)



A certa altura, o meu amigo poeta andou, durante uns tempos, mais calado e fugidio.
Passava mais tempo em casa e, nas poucas ocasiões em que comparecia nas nossas reuniões de café, ficava mais calado do que era normal.

Um dia explicou-se: tinha tido uma ideia para uma peça de teatro.

“É sobre uma mulher que se apaixona perdidamente por um homem. São ambos jovens e aquilo que a mulher ama naquele homem são duas coisas. A mulher, claro, não tem consciência disso. Ama nele a rebeldia, a irreverência, uma certa violência em termos de temperamento. Mas aquilo que ama ainda mais é a ideia de ser capaz de o mudar, de o acalmar, de o tornar mais dócil. Acabam por juntar-se, apesar de ele, inicialmente, resistir um pouco. Com o passar do tempo, sem que se aperceba disso, ela começa a tentar mudá-lo. Quer uma vida estável, segurança, um futuro. O processo, claro, é violentíssimo. Ele resiste com todas as forças. É precisamente nesse choque que reside o conflito central da coisa, que se alastrará aos pormenores mais insignificantes do quotidiano do casal. Lavar a louça, decidir que quadro colocar numa parede, todas as coisas, por mais minúsculas, serviram de pretexto para que esse conflito venha à tona.”

“Parece interessante”, comentou alguém.

“Nem por isso”, respondeu o meu amigo poeta. “A parte interessante é o desenlace e não a batalha. No fim da peça, ela deixa-o. Precisamente porque o conseguiu mudar. Já não consegue sentir nada senão desprezo por aquela espécie de marido amestrado. Troca-o por outro gajo. Um gajo novo. Um rebelde.”

Durante semanas, o meu amigo poeta só falou daquilo. Andava obcecado. Segundo o que nos contava, o a produção da coisa progredia num ritmo avassalador. Até ele estava incrédulo com a velocidade com que a sua caneta enchia páginas e páginas de diálogos.

Depois, progressivamente, começou a falar menos da peça. Começámos a estranhar. Houve alguém que, finalmente, lhe perguntou como andava a peça de teatro, apesar de não estar verdadeiramente interessado naquilo. O meu amigo poeta franziu o nariz, olhou para o lado e respondeu:

“Voltei aos poemas.”

o meu amigo poeta (XVII)



O que o meu amigo poeta queria mesmo era ter sido pintor.

Não é que desgostasse de palavras. Bem pelo contrário, adorava-as. Mas vivia fascinado pelas imagens. Era capaz de se perder a observar coisas em que mais ninguém repararia – uma folha iluminada pelo Sol, a textura rugosa de uma parede, uma pequena sombra projectada na areia. Ficava a olhar durante horas, completamente imóvel, com uma curiosidade infantil. Nesses momentos, a sua expressão pacificava-se, revestia-se de uma serenidade que, na maioria do tempo, estava ausente dele.

Chegou a tentar tornar-se pintor. Experimentou uma data de materiais, técnicas, tintas e abordagens. Dizia que, enquanto fazia aquilo, estava mais próximo da felicidade do que em qualquer outro momento. Contudo, as experiências não lhe saíram bem. Faltava-lhe o olho, a firmeza da mão, a habilidade para deixar que alma se materializasse numa imagem.

Depois, percebeu que escrevia bem. Que era através da palavra escrita que conseguia alcançar os outros, apesar de não o fazerem tão feliz como as imagens. Deixou de pintar de um dia para o outro. Mesmo os seus cadernos, antes cheios de pequenos esboços, passaram a conter apenas palavras. Já nem um rabisco, nem uma mancha se depositavam no papel. O meu amigo poeta autoproclamou-se um fracasso enquanto pintor, ou projecto de pintor, e abdicou daquilo. Desistiu, simplesmente.

Mesmo anos depois, ainda falava sobre isso. Terminava sempre com um olhar triste e um desanimado encolher de ombros.

“Cada macaco no seu galho”, concluía o meu amigo poeta.

13 setembro 2012

o meu amigo poeta (XVI)



Normalmente, o meu amigo poeta não se lembrava dos sonhos. Por vezes, lembrava-se apenas de fragmentos durante os cinco minutos que se seguiam ao acordar, mas mesmo isso era pouco frequente. Havia casos ainda mais raros: aqueles sonhos que permaneceriam para sempre vivos na sua consciência.

“O melhor sonho que alguma vez tive”, disse uma vez o meu amigo poeta, “foi o das duas loiras platinadas.”

“O quê?”

“Foi no dia em que me fizeram um broche pela primeira vez. Lembro-me desse sonho como se fosse ontem. Eram duas loiras iguais à gaja d´A Laranja Mecânica.”

“Qual delas?”

“Aquela que o gajo não consegue comer porque já está condicionado. Não sei se lembram.”

“Acho que dessa ninguém se esquece”, disse eu a rir.

“Eu também não me esqueço”, continuou o meu amigo poeta, “mas o meu sonho ainda foi melhor. Eram duas gajas com cabeleiras postiças, platinadas, cabelos de um loiro quase branco, brilhante, franjinhas bonitas a acompanhar a linha dos olhos.”

O meu amigo poeta fez uma pausa. Houve um protesto:

“E então? Conta lá o resto do sonho!”

“Eram gémeas. Iguaizinhas. Eu estava deitado, nu. Sentia-me leve, absolutamente descontraído, tomado pelo mais doce dos torpores. Como se planasse, mas, ao mesmo tempo, estivesse rodeado de almofadas. As duas gémeas estavam de joelhos à minha frente, só de cuecas. Sempre que uma me chupava, a outra ficava a olhar para mim, com aqueles seios breves e perfeitos, aquela pele imaculada, um olhar meigo e meio imbecil. Depois trocavam. A que estava a sorrir punha-se a chupar e a que estava a chupar punha-se a sorrir. Eram lindas. Perfeitas. Para mim, aquele momento continua aquilo que mais se aproxima da definição do prazer. Um prazer puro, completo, total.”

O meu amigo poeta sorria, distraído. Parou de falar. As pessoas ao seu redor estavam tensas, embrenhadas no seu relato. O silêncio durou pouco, porque toda a gente queria mais daquilo.

“Então e depois?”

“Conta lá! Já chega de suspense!”

O meu amigo poeta pôs-se sério subitamente, com um ar rabugento. Como se tivessem acabado de acordá-lo.

“E depois? O que é que acham que aconteceu depois, meus cretinos?”

“Sei lá! Conta mas é isso, porra!”

“Aconteceu a mesma merda que acontece sempre. A mesma merda que acontece todo o santo dia”, respondeu o meu amigo poeta. “Acordei.”

Toda a gente se riu, menos o meu amigo poeta. Continuava a desejar nunca ter acordado daquele sonho.

o meu amigo poeta (XV)



Por vezes, o meu amigo poeta sentia-se preso. O que nem é nada de particularmente interessante, bem vistas as coisas. Já a maneira como enfrentava a situação, aquilo a que chamava o ‘ataque de condição citadina’, ganhava, por vezes, contornos bastante originais.

Entre aqueles que privavam com o meu amigo poeta, um desses ataques de condição citadina converteu-se numa espécie de mito.

Deve ter sido um ataque mais intenso do que o habitual. O meu amigo poeta tivera uma semana terrível. Desilusões laborais, que significavam que a dada altura do mês teria de se contentar com uma dieta exclusiva de ovos cozidos ao almoço e ao jantar, desilusões amorosas, que significavam que, mais uma vez, teria de tratar das suas necessidades dando à mãozinha, desilusões artísticas, neste caso trinta e dois poemas que acabaram acidentalmente dentro da sua máquina de lavar e a desilusão física de andar outra vez com problemas no fígado.

Contou ele que o ponto de não retorno ocorreu no exacto momento em que a ponta do seu lápis se partiu a meio de um poema. Disse que ficou a olhar para aquilo por momentos, sem reacção, completamente paralisado. “Mas, mal percebi o que acabara de se passar, só conseguia pensar em arrancar os cabelos, morder os meus próprios dentes ou dar cabeçadas na parede. Olhei ao meu redor e o quarto parecia ainda mais desesperadamente pequeno do que antes”, continuou ele. A seguir, contou que desatou aos berros.

“MERDA! MERDA! MERDA!”, gritava ele a plenos pulmões, mesmo quando se pôs a caminhar como um louco pela casa, a todo o gás. Pegou nas chaves, abriu a porta e saiu, batendo-a com estrondo contra a parede. “MERDA! MERDA!”, continuava ele. A velha do terceiro andar veio às escadas e tudo, para mandar vir com o meu amigo poeta, mas era como se ele nem sequer a ouvisse. Lá parou de berrar, mas não disse mais nada enquanto desceu, em passo de corrida, as escadas do prédio.

Começou a descer ruas. A sua raiva guiava-o inexplicavelmente para o rio. E o meu amigo poeta seguiu-a, sem pensar em mais nada, de modo que, das doze vezes que atravessou a estrada, nem sequer se deu ao trabalho de ver se vinham carros na sua direcção. Limitou-se a caminhar. Uma espécie de Moisés a dividir o tráfego ao meio, por entre buzinadelas, insultos, chiares de pneus, uma figura para quem parar, nem que fosse por um segundo, não era, simplesmente, uma opção.

Pode-se dizer que teve muita sorte, porque conseguiu entrar na zona ribeirinha sem ter sido atropelado e sem que ninguém lhe partisse os dentes. E lá continuou, guiado por uma espécie de voz interior incendiada de raiva e autoridade, até que se viu perante o rio. Trepou o muro e olhou para aquilo. Sentia-se desorientado. Tinha de fazer alguma coisa. Tinha de fazer alguma coisa.

Acabou por baixar as calças, ali de pé, perante os olhares mais escandalizados, virar-se de costas e, com uma expressão furiosa, enquanto dizia, num tom de voz sofrido, “tu vais já ver, tu vais já ver”, defecar ali mesmo. Quando ouviu o cagalhoto a mergulhar nas águas do rio, virou-se para trás e pôs-se a andar para casa. Disse que era como se lhe tivessem tirado um peso de cima.

“Quando um gajo está mal e não encontra uma solução com um efeito permanente para o seu problema, chega lá por outro lado. Muito simplesmente, alivia-se”, rematou ele ao explicar aquilo.

O meu amigo poeta pediu o café, que ainda não tinha bebido, e o porto com que gostava de o acompanhar. Ninguém o contradisse, nem lhe pediu mais explicações sobre o assunto. Talvez porque, àquela mesa, só se encontravam exemplares dessa espécie que a sociedade gosta de catalogar como doidos. Talvez por aquela ser uma mesa ao redor da qual estavam sentadas pessoas mais tolerantes em relação ao capricho alheio do que um ser humano comum.

Ainda assim, nenhum de nós esqueceu aquele relato.

10 setembro 2012

o meu amigo poeta (XIV)



Dou-me agora conta de que ainda não descrevi fisicamente o meu amigo poeta. A verdade é que, tal como sucede por vezes quando deixamos de ver gente com quem passámos muito tempo, a memória que tenho da sua aparência se cristalizou em duas ou três imagens muito vagas.

Possuo, contudo, uma fotografia que é capaz de servir para o efeito.

O meu amigo poeta está no sofá, deitado de lado, com um braço ao dependuro. Tem os olhos fechados, a boca aberta e os cabelos negros em desalinho. À primeira vista, dir-se-ia que o que ali está é um cadáver e não uma pessoa. Apesar do enquadramento demasiado oblíquo, consegue discernir-se a sua compleição: é muito magro, muito pequeno. O braço é quase esquelético. A barba está por fazer há três ou quatro dias. É espessa, oculta-lhe as faces e a boca.

Tem a camisa aberta e engelhada, a camisola interior cheia de nódoas. Sobre a barriga, uma lata de cerveja caiu, vertendo-se o seu conteúdo sobre uma pilha de papéis preenchidos por uma letra muito miúda, em linhas muito direitas. Está de calças de ganga velhas, o tecido já claro, gasto, fino. Tem as pernas cruzadas sobre o sofá e, ao fundo, a janela aberta deixa que a luz do final da tarde invada o espaço.

Ao lado do sofá, no chão, há uma pilha de papéis com meio palmo de altura, muito direita. Como uma pequena torre de papel, uma espécie de edifício dentro do edifício. À volta das folhas, três ou quatros latas de cerveja, pousadas ao acaso.

No meio de todo este caos, o meu amigo poeta dorme. Apesar de estar todo torcido, encharcado e de todo o lixo espalhado ao seu redor, o seu rosto apresenta a expressão mais serena deste mundo.

06 setembro 2012

o meu amigo poeta (XIII)


Havia pouca coisa que o meu amigo poeta detestasse mais do que apresentações de livros. Era o tipo de evento que o deixava nervoso, despertando nele uma curiosa sensação, um misto de medo, vergonha e raiva.

Muitos dos seus pares, sendo que por alguns destes o meu amigo poeta nutria sentimentos de verdadeira afeição e admiração, muitas vezes mútuos, chegavam mesmo a ressentir-se disso. Era comum que o meu amigo poeta faltasse ao lançamento dos seus livros. Houve até quem tivesse deixado de lhe falar por causa disso.

Contudo, na verdade, não havia muito a fazer. Para ele, era uma coisa visceral. Achava que, de uma maneira ou de outra, a apresentação de um livro, enquanto evento público e oficial, acabaria sempre por tornar-se num espectáculo de circo. Um espectáculo de circo útil, em certa medida, mas ainda assim um espectáculo de circo.
O meu amigo poeta fervia facilmente quando era confrontado com a vaidade, com o aproveitar de um palco com o único propósito de massajar o ego, com a hipocrisia de se que dizer que se amam as letras e as artes, quando o que se ama verdadeiramente é a oportunidade de projectar uma imagem de irreverência, de inteligência, de interlocutor privilegiado com os livros, essa coisa que muitas vezes passa por ser sagrada, sem o ser realmente.

“Não sei”, disse-me ele uma vez, “chega-se ali e parece que toda a gente está a tentar ser como uma bela estátua que se mexe. As poses são trabalhadas, falseadas. Como se seres humanos se tenham produzido para que possam ser contemplados, admirados e invejados. Há mexericos, há maledicência, há coscuvilhice. Há sempre, por ali, um monte de mentiras. Um espectáculo mesquinho e desonesto, em que o livro é o menos importante dos intervenientes. Passa a ser apenas um pretexto.”

Concluiu, depois: “Por outro lado, toda a gente espera que te comportas da mesma maneira. E eu, que não consigo transformar-me em estátua, sinto-me como se estivesse nu no meio de uma data de gente vestida. É horrível. Ao mesmo tempo, apetece-me pôr-me aos berros com toda a gente que por ali anda e desaparecer do meio daquela merda toda, só para que ninguém me veja.”

Fez uma pausa para limpar os óculos. Olhou para longe.

“Quanto a apresentar os meus, também não gosto. É como se toda a gente fosse um juiz à espera que eu me justifique. É absurdo. Para mim, a escrita é sobretudo um exercício de liberdade, mas nesse contexto, sou sempre assaltado por uma certa cagufa. Tenho medo que me descubram a careca, que percebam que sou uma fraude.”

Não me esqueci destas palavras. Tenho a impressão de que era precisamente este o tipo de coisa que o meu amigo poeta só partilhava comigo e que era esta faceta da nossa relação a causa da estima que ele sempre demonstrou ter para comigo. Talvez por isso, tenha sido eu o único a compreender o que se passou realmente num fatídico domingo de Verão, numa tarde quente.

Era a apresentação do livro do meu amigo poeta. A sala encheu-se de gente. Gente que, na sua maior parte, comprou mesmo o livro. Gente paciente que ficou ali à espera durante horas. O meu amigo poeta foi o único que não apareceu. Faltou ao lançamento do seu próprio livro.

Houve quem tivesse pensado que faltou por distracção: “Está-se a cagar tão d´alto para isto que nem se lembrou.” Houve quem pensasse que agiu por desfaçatez, por provocação pura e dura: “Aposto que está em casa, refastelado a beber uma cerveja e a rir-se às gargalhadas, a imaginar-nos aqui plantados com caras de parvo, à espera do génio”. Já eu, limitei-me a recordar as palavras do meu amigo poeta e a interpretar o caso através delas, enquanto olhava a cadeira que lhe havia sido destinada, vazia: “Tenho medo que me descubram a careca”.

A verdade é que, depois disto, nenhuma outra apresentação de um livro do meu amigo poeta passou de um fracasso em termos da quantidade de gente presente. Já não ia quase ninguém aos seus lançamentos.

Bem vistas as coisas, talvez o meu amigo poeta preferisse que as coisas se passassem assim.

03 setembro 2012

o meu amigo poeta (XII)


Quando o meu amigo poeta tinha sede, aquela sede da alma que leva os homens a beber demais (nesses momentos, para ele, o conceito de beber demais deixava de fazer sentido), gostava de ir aos tascos onde se canta o fado. Contudo, não era a música que o atraía.

Desenvolvera um esquema eficaz para que a cardina lhe saísse mais barata: sequências de finos intercalados com penaltis de bagaço. A cerveja vinha sempre morta e o bagaço era do mais vil, mas desde que a coisa funcionasse, estava tudo bem para o meu amigo poeta. Por cada três finos, lá emborcava um bagaço. Repetia a sequência três ou quatro vezes e estava pronto para a festa.

Sempre que o fadista pedia silêncio, desatava a rir às gargalhadas. E ele, que até é habitualmente mais do que comedido no que toca a ruídos, ria nesses momentos um riso histérico, ensandecido, brutal e cavernoso. Era capaz de interromper a mesma música duas ou três vezes, ou, se a coisa corresse mesmo bem, adiar o seu início por alguns minutos. E repetia e voltava a repetir a gracinha, como uma criança que quer a todo o custo ser o centro das atenções, até que os fadistas, de ânimos tomados de uma soberba raiva, ampliada pelos copos de que também eles haviam abusado, se viravam a ele. Faziam peito, erguiam o rosto, arregaçavam as mangas e, de rostos animados por uma vermelhidão incrível, acabavam por convidar o meu amigo poeta a resolver o assunto lá fora, que é o que fazem os cavalheiros.

Conseguia enfiar um ou dois socos nos seus adversários, mas os seus golpes não faziam mossa. E fartava-se de levar. De modo que terminava sempre estendido num canto sujo e escuro, a tentar perceber se lhe faltava algum dente. Ajudei-o a reerguer-se em muitas ocasiões deste género. De seguida, arrastava-o para o carro e deixava-o em casa. Mas, à medida que a cena se ia repetindo, também eu me cansei daquele capricho do meu amigo poeta. Estávamos dentro do carro e eu, já farto daquele seu capricho inexplicável, perguntei-lhe por que raio cismava ele em continuar a fazer aquilo, se já tinha a certeza de que ia levar na boca.

O meu amigo poeta riu-se.

“Silêncio, que se vai cantar o fado?” respondia ele, “mas quem é que eles pensam que são?”

Era assim o meu amigo poeta. Nunca gostou muito de que o mandassem calar.

o meu amigo poeta (XI)


Decidiu certo dia o meu amigo poeta, numa altura em que a sua vida profissional lhe permitia viver menos aflito com as suas economias, que ia mudar-se.

Talvez dizer que a sua vida profissional corria de feição seja pouco acertado. Na verdade, duas senhoras abastadas decidiram patrocinar a criação do meu amigo poeta. Os motivos, como será fácil adivinhar, não eram os mais nobres. Gostavam de ostentar aquilo como uma espécie de título nobiliárquico. A partir daquele momento, eram mecenas. Coisa chique, portanto, que compensava sem dificuldade a pequena esmola que dispensavam todos os meses ao meu amigo poeta.

Perdão. Divago. Regressemos ao assunto.

O meu amigo poeta, vendo-se assim numa situação de inesperada abastança, decidiu que era altura de mudar o seu domicílio.

Queria uma casa maior numa rua mais calma. Queria morar num edifício cujas paredes não estivessem permanentemente a descascar-se. Queria uma casa arejada, um sítio onde, apesar dos seus deploráveis hábitos de higiene domiciliária, o ar não ganhasse aquela desconfortável densidade característica do excesso de pó em suspensão.

Apesar de nunca o ter admitido, creio que um certo medo se apossara dele. Talvez medo seja pouco. Talvez seja mais exacto dizer que andava apavorado. Lembro-me de o ver tornar-se, nessa altura, mais sério e reservado do que o habitual. Nessa semana, ocorreram duas rixas na sua rua. Uma delas terminara à navalhada. Portanto, apoquentava-o a perspectiva de levar também uma naifada no bucho.

Acabou mesmo por mudar-se para um apartamento mais caro, numa rua mais tranquila de uma zona mais segura. Cheguei a visitá-lo para ver a casa. Mandou vir dois sofás. Trocou uma das suas mesas decrépitas por uma novinha em folha. O seu novo domicílio era espaçoso, arejado, bem iluminado. Os acabamentos eram impecáveis. Era uma casa de fazer inveja a muita gente.

Mas o meu amigo poeta não aguentou.

Aquilo não era para ele. Não conseguiu escrever uma única linha na sua casa nova. Papéis amarrotados com frases a meio amontoavam-se pelos cantos. Sentia falta do escuro, do sujo, da velha varanda que nunca varria e tão pouco aproveitara convenientemente. Sentia falta do clamor das ruas, da sombra. Sentia falta da vizinhança ensandecida. Sentia um peso negro, um vazio na alma – a consciência de se ter aburguesado.

Passados dois meses, mandou empacotar a mobília e regressou ao seu velho apartamento.

No meio disto tudo, o que me espanta é que os vizinhos deram pela falta dele. A velhota da mercearia disse-lhe, de lágrima ao canto do olho, que tivera saudades, que aquilo sem ele não era igual, que parecia que faltava ali qualquer coisa. Vá-se lá saber porquê.

Quanto às duas senhoras, o meu amigo poeta foi igualmente célere a resolver o assunto. Escreveu-lhes a dizer que estava farto daquela proxenetice. Que a arte que praticava era superior àquela brincadeira de mau gosto. Que agradecia, mas estava farto de se sentir o Lulu das honradas senhoras. Enviou a carta juntamente com o último cheque que recebera e não teve mais notícias delas.

O meu amigo poeta, contudo, não era burro nenhum. Antes de lhes devolver o dinheiro, deu conta de todas as despesas que tivera com as duas mudanças. No final, dirigiu-se ao restaurante mais caro da cidade. Ainda que não o soubessem, a última coisa que as duas mecenas proporcionaram ao meu amigo poeta foi um bife mal passado com batatas fritas.