18 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXIX)



Enquanto esperava pelo meu amigo poeta, entretive-me a observar, através do vidro embaciado, as pessoas que passavam pelo parque de estacionamento. O frio instalava-se aos poucos no meu corpo e lembro-me de perguntar a mim mesmo, mais do que uma vez, como poderiam elas ser tão felizes. Havia qualquer coisa nelas, porventura dissimulada, nos seus sorrisos largos, nas suas vozes animadas, que despertava a minha inveja. Não sou muito de exageros. Não direi, portanto, que eram felizes. De uma forma estranha, contudo, pareciam mais leves do que nós. Como se estivessem em paz com o que as rodeava, como se houvessem assinado um contrato, uma espécie de trégua com a vida na qual nunca me convidaram a participar.

Depois, finalmente, o meu amigo poeta. Aproximava-se lentamente, rosto baixo, de mãos nos bolsos do casaco. Volta e meia, a luz dos candeeiros atingia-lhe o rosto, mas era como se não o iluminasse verdadeiramente. Parecia-me antes que a única coisa que essa luz fazia era inscrever-lhe sombras no rosto, de um modo que me levava a pensar que aquilo não era um rosto humano, mas o palco de um combate.

O meu amigo poeta abriu finalmente a porta, sentou-se, despiu o casaco e pôs o cinto de segurança sem que entre nós tivesse sido trocada uma única palavra. Arranquei. Percorremos as ruas da cidade em silêncio, numa marcha lenta. Havia um clima tenso dentro do carro. Éramos os únicos ali dentro, mas havia algo mais. Lembro-me de ter pensado que às vezes não é só o som que pode fazer vibrar o ar, que o ar pode animar, que o pode transformar. Aquilo que fica por dizer carrega também um peso, uma densidade impossível de ignorar, muitas vezes acompanhada de uma sensação de fragilidade ou efemeridade. E foi então que ele suspirou e eu olhei para o rosto dele, novamente. A expressão era dura, indiciava talvez algum esforço, uma fútil tentativa de ocultar a sua alma.

Ele suspirou. Um suspiro de alguém que se lamenta, não um suspiro de alívio, mas um de resignação.

“Estás bem?”, perguntei eu.

Ele demorou um pouco a responder.

“Claro que estou bem.”

Esperei mais um pouco. Não sabia bem o que dizer, mas havia perguntas que não podia deixar de fazer. Precisava de saber.

“Porque é que nunca falaste dela?”

“Não sei”, respondeu o meu amigo poeta, “não é coisa de que me orgulhe muito.”

Houve uma pausa. O meu amigo poeta tirou os óculos do rosto e pôs-se a limpá-los no colo, enquanto eu conduzia. Ao olhá-lo de relance, pude ver-lhe os olhos muito brilhantes. Estava a trincar a sua própria bochecha. Tremia. Contudo, o corpo mantinha-se firme.

“Quer dizer, não era bem isto que eu queria dizer”, continuou ele, num tom de voz arrastado, “não é dela que eu não me orgulho, é de mim.”

“Não sei se percebo o que queres dizer.”

“O que é que achas que eu estou a querer dizer? Não é difícil adivinhar. Às vezes um gajo faz merda e às vezes não consegue reparar os estragos feitos por mais que tente.”

A voz dele tremia ainda mais. Fazia um esforço nítido para dizer aquilo, mas, mesmo assim, não conseguia dizer nada de muito significativo acerca do assunto. Enrolava e enrolava e parecia difícil desenvolver aquilo.

“Lembras-te da Rita?”

“Claro que sim. Ela é filha dela?”

“Não. É filha da gaja com quem pus os cornos à Rita.”

“Estás a falar a sério? Como é que nunca me falaste de nada disso? Como é que ninguém soube?”

O meu amigo poeta encolheu os ombros.

“O motivo é precisamente o mesmo. É uma coisa de que não me orgulho muito.”

“Mas continuas a vê-la?”

“À Rita?”, perguntou o meu amigo poeta, quase escandalizado, “claro que não! Cruzes, credo, louvado seja o senhor! Para que é que eu ia andar agora a ver a Rita?”

“Estou a falar da tua filha, pá!”

“Ah, a minha filha”, respondeu ele, pensativo. Tirou instintivamente os óculos do e pôs-se a limpá-los novamente. “Raramente. Muito raramente.”

“Porquê?”

O meu amigo poeta encolheu outra vez os ombros. Pareceu que ia começar a falar, mas as palavras não lhe saíam. Percebia-se facilmente que não sabia bem por onde começar.

“É difícil de explicar”, começou ele.

“Nota-se”, respondi eu.

“Tem calma. Eu explico.”

Houve uma pausa.

“Quando eu soube que a Teresa… que é a mãe, como deves calcular… quando eu soube que ela estava grávida, ainda estava com a Rita. E fiquei em pânico, claro. Foi a maior embrulhada em que me meti na vida toda e, como bem sabes, não foram poucas. Havia decisões a tomar. E eu tomei a pior decisão. Escolhi a Rita.”

“O que é que estás a dizer? Não te percebo.”

“Tu sabes como é que eu sou. Estás-me a ver a educar alguém? A mim? Na altura, ou ia com a Teresa para a terrinha para tomar conta da miúda, ou continuava a minha vida.”

Estávamos já próximos da casa do meu amigo poeta. Entrei no bairro, desacelerando ainda mais. Não se via ninguém na rua naquela noite fria.

“Opá, decidimos que eu ajudava com o dinheiro, ia visitar uma ou duas vezes por ano, e assim ninguém atrapalhava ninguém. Ia eu para o meu lado, a Teresa para o dela, e a miúda ia com ela. E pronto. Foi isso.”

Virei à esquerda. Passei pelo café do bairro muito devagar. Lá dentro, os velhotes continuavam agarrados aos seus copos, virados para a televisão. As vozes soavam bem alto de lá de dentro. Virei à direita e parei em frente ao prédio do meu amigo poeta.

Ele tirou o cinto, vestiu o casaco, mas não se levantou logo. Ficámos mais um pouco dentro do carro. E eu não consegui manter-me calado.

“Desculpa lá, mas… Foi o melhor que conseguiste fazer? Deixar as coisas assim, como se não se tivesse passado nada?“

Foi quando o meu amigo poeta olhou para mim, com uma expressão embaraçada e encolheu os ombros que perdi finalmente as estribeiras. Não me lembro de outro momento em que me tenha sentido tão desiludido pelo meu amigo. A única coisa que consegui fazer naquele momento foi gritar com ele.

“Ela é a tua filha, caralho!”

Ele voltou-se para a frente. Olhos fixos, apontados para coisa nenhuma, pose resignada, expressão vazia.

“Eu disse-te. Não é nada de que me orgulhe”, disse o meu amigo poeta antes de sair.
Fiquei a vê-lo. Abriu a porta do prédio e desapareceu do interior do edifício. No caminho para casa, acabei por fazer um pequeno desvio pela parte mais animada da cidade. Guiei durante algum tempo, sem destino, muito lentamente, para digerir tudo aquilo. As pessoas passeavam com copos na mão e sorrisos nos lábios. Continuavam a parecer-me estranhas. Pareciam-me leves, assustadoramente leves.

Quando me fartei do espectáculo, voltei para casa. Nessa noite, foi mais difícil adormecer do que numa noite normal.

15 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXVIII)



Passava já mais de uma hora da hora combinada quando o meu amigo poeta fez, finalmente, a sua aparição no restaurante.

Estava mais nervoso do que era habitual. Não conseguia manter o contacto ocular, o andar parecia vacilar um pouco e a respiração estava um pouco mais acelerada. Aproximou-se com uma expressão genuinamente aflita, cumprimentou-me primeiro e, depois, cumprimentou a filha com dois beijos, muito corado, enquanto se desfazia em desculpas.

“Estou desolado, a sério. Desolado”, dizia num ritmo aceleradíssimo o meu amigo poeta, gesticulando vigorosamente, “hoje foi mesmo um daqueles dias em que uma pessoa não consegue fazer nada à primeira, andei o tempo todo desorientado, peço desculpa… Primeiro não encontrava o raio das calças, depois distraí-me a escolher o casaco, enganei-me duas vezes no caminho… Enfim, uma tortura. Estou desolado.”
“Pois”, respondeu a filha num tom seco, “o que é mais curioso é que no ano passado se passou exactamente a mesma coisa.”

“Tens razão. Coisas que acontecem, enfim… Não sei que mais te diga…”

Eu sentia-me mesmo desconfortável metido naquela cena. A filha do meu amigo poeta estava fula, o meu amigo poeta continuava a pedir desculpas, ela ficava ainda mais fula, ele pedia mais desculpas… Enfim, espero que consigam perceber a coisa. De modo que decidi atalhar e sugeri que escolhêssemos a comida.

“Pode ser”, respondeu a filha do meu amigo poeta.

O meu amigo poeta suspirou de alívio e lá mandámos vir, finalmente, a comida.

O resto do jantar decorreu mais ou menos no mesmo registo. Um espectáculo deplorável. O meu amigo poeta sempre aflito com as bocas da filha, a filha do amigo poeta sempre com pouquíssima paciência para o que quer que o pai dissesse, e eu ali no meio, sem perceber muito bem que comportamento adoptar perante o estranho convívio em que me via envolvido. Tornou-se muito rapidamente nítido o motivo que levara o meu amigo poeta a convidar-me para participar naquele santo repasto: usava-me para elogiar a filha sempre que se lembrava de alguma coisa que pudesse servir de elogio. Um exemplo:

“Sabes que a Joana tem um talento inacreditável para a fotografia? Tens de ver um dia as fotografias que ela tira. São espectaculares...”

O problema maior tinha que ver com o facto de o meu amigo poeta não ser propriamente um perito no que toca a dar graxa a alguém. Pelo contrário, posso afirmar que era daquelas coisas em que ele se espalhava ao comprido, tal era a sua inaptidão para o exercício.

Fiquei a saber que a filha dele era jornalista, casada, que tinha uma filha que o meu amigo poeta quase nunca vira. Morava numa pequena cidade a oitenta e poucos quilómetros de distância. Viajava muitas vezes, mas quase sempre em trabalho, e via muito poucas vezes o pai. Estranho era o facto de não conhecer a mãe dela. Fazendo as contas, não era difícil verificar que já era amigo do poeta na altura em que ela fora concebida.

A rapariga despachou o jantar o mais que pôde. Comeu depressa e ainda eu ia a meio do meu digestivo quando ela propôs que fôssemos andando. O caminho de regresso era longo e tinha um dia muito ocupado no dia seguinte. O meu amigo poeta ainda tentou fazê-la ficar mais um pouco, mas sem sucesso. Estava mais que visto: para ela, aquilo era uma visita de cortesia, uma obrigação a cumprir e nada mais do que isso.

Assim, acabámos por pedir a conta cerca de uma hora e meia depois de o meu amigo poeta ter chegado. Este encarregou-se da despesa e encaminhámo-nos para o parque de estacionamento, onde me despedi dela. Ficou combinado que eu esperaria o meu amigo poeta no meu carro, para depois o deixar em casa. Foi o que fiz.

Entrei no carro e esperei por ele.

11 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXVII)



O meu amigo poeta estava atrasado. Como já estava mais do que habituado aos seus atrasos, pedi um fino mal me sentei no restaurante. Bebi-o, enquanto observava o sítio. Estranho. O meu amigo poeta, com quem me habituei a partilhar refeições nos tascos mais reles, a convidar-me para um estabelecimento de aspecto caro. Mesa reservada, empregados de laçarote, muito direitos, em uniformes imaculados, com coletes em vermelho vivo, castiçais de aspecto dispendioso, mobília antiga em madeira escura, candeeiros elaborados. Iluminação impecável, muito agradável, gente de posses a comer a sua refeição. E eu ali no meio. O único a beber um fino.

Quando o fino acabou, acabei por pedir um porto seco. Não porque me apetecesse, mas porque pensei que aquela gente podia estranhar um gajo como eu ali sentado a beber finos em silêncio, sozinho numa mesa.

Estava eu a meio do meu porto seco quando uma rapariga entre os vinte e cinco e os trinta parou à frente da mesa a olhar para mim. Corpo elegante, a tender para o magro, dentro de um vestido castanho de tecido fino. Rosto bem desenhado, olhos rasgados por detrás dos óculos, pele morena. Trazia o cabelo apanhado numa espécie de novelo atrás da nuca, que deixava ver um pescoço longo, ombros arredondados. Sorriu um sorriso seco, inclinou-se e perguntou-me se era eu o amigo do pai dela. Respondi que sim, ela pediu-me desculpa pelo atraso e sentou-se imediatamente.

Só quando ela pediu um café e um porto ao empregado, os dois em conjunto e ainda antes de ter jantado, é que acreditei mesmo que estava perante a filha do meu amigo poeta. Pelos vistos, o hábito de abusar da ingestão de cafeína corria-lhes no sangue. E o hábito de a acompanhar com vinho do porto também. Reparei ainda nalgumas semelhanças entre pai e filha. Os gestos dela, ao limpar os óculos, eram exactamente iguais aos do meu amigo poeta. E os olhos. E algumas expressões faciais. Sim, as semelhanças estavam lá.

Seguiram-se alguns momentos algo desconfortáveis, se não mesmo humilhantes para a minha pessoa. Tentei meter conversa várias vezes, mas a rapariga respondia-me sempre ou com monossílabos, ou com onomatopeias, ou, pior ainda, com um sarcasmo dos mais ácidos de que já fui alvo.

Quanto ao meu amigo poeta, esse ainda havia de demorar.

08 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXVI)



Uma bela tarde, estava eu a fazer companhia ao meu amigo poeta no café, quando ele me perguntou:

“Amanhã queres ir jantar comigo e com a minha filha?”

Franzi o sobrolho.

“Tu tens uma filha?”

“Julgavas-me impotente?”

Fiquei estupefacto com aquilo. Positivamente atónito. Catatónico. Conhecia o gajo há mais de duas décadas e ele nunca antes mencionara sequer que tinha descendência. De modo que, quando recuperei a faculdade da fala, só consegui insistir:

“Tu tens uma filha?”

“Tenho”, respondeu ele, encolhendo os ombros, a olhar na minha direcção com uma expressão de indiferença. Agia como se não se tivesse passado nada. “Queres vir ou não?” perguntou ele a seguir.

Não consegui responder-lhe. Levantei-me e comecei a caminhar em direcção à saída. Ainda o ouvi aos berros, a perguntar o que é que tinha sido, se eu me estava a passar, se então eu me punha a andar dali assim, mas nem me voltei para trás. Estava fodido, voltei para casa.

À noite, o telefone tocou. Era o meu amigo poeta.

“Então? Conto contigo amanhã?”

Fiquei calado durante uns segundos. Acabei por aceitar o convite. O que era de estranhar era o facto de eu me ter surpreendido com a novidade. O meu amigo poeta não era muito de partilhar pormenores da sua vida sentimental.

01 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXIV)



É-me difícil descrever o rosto do meu amigo poeta. 

Sim, algo tão central num ser humano como o seu próprio rosto. Há, primeiro, o esquecimento. Depois, o facto de a cara dele ser uma cara atipicamente normal. A cor da pele, o formato do rosto, o banalíssimo castanho dos olhos, as proporções da boca e do nariz, o tamanho das sobrancelhas, a densidade da barba, a angulosidade, a largura. Todos esses elementos do rosto eram muito normais. E o conjunto era, em si mesmo, tão normal quanto as partes que o compunham.

Contudo, e apesar de o seu corpo não ser também dotado de alguma qualidade particularmente distinta, o meu amigo poeta era das pessoas que mais facilmente seriam identificadas à distância. Eram a pose, os gestos, o ritmo e a velocidade dos movimentos, ora muito bruscos, ora muito lentos, que permitiam reconhecê-lo, mesmo no meio da multidão. Falo de coisas tão elementares como a direcção do olhar enquanto se mexe um café, a posição dos ombros e da cabeça durante um passeio, a forma como um sorriso se instala no rosto, o modo como um gesto de mão acompanha a intensidade de uma frase falada. Havia uma espécie de ausência, de alheamento, a temperar o comportamento corporal do meu amigo poeta. Algo que lhe afectava de igual forma a expressão facial, como que indicando que, apesar de o corpo dele estar ali, o seu pensamento estava noutro lado qualquer.

No entanto, mesmo que não ficasse tão afectado como os que o rodeavam pelo que estivesse a acontecer, ou a ser discutido, o meu amigo poeta não era gajo para perder o fio à meada de uma conversa, ou para deixar de argumentar durante uma discussão. Era mesmo capaz de se empolgar como qualquer outra pessoa e, apesar de ser reservado, não era frio. Mas percebia-se sempre, o corpo dele indiciava-o. O meu amigo poeta estava ali, no local onde o seu corpo se encontrava, mas sempre sem estar completamente lá.

o meu amigo poeta (XXV)



Quando lhe contar que o meu amigo poeta era viciado em estímulos, o estimado leitor perguntar-me-á, porventura, se não o é toda a gente. Essa objecção hipotética, contudo, dever-se-ia a um único motivo: o caríssimo leitor nunca esteve frente a frente com o meu amigo poeta, coisa que o impede de conhecer a dimensão quase sobre-humana do seu vício.

Punha as mãos em todo e qualquer estímulo novo que se lhe apresentasse. Não era coisa que se relacionasse directamente com a sua vida, com as suas necessidades quotidianas. O meu amigo poeta não precisava de estímulos senão para escrever. Mas, depois de tanto tempo, de tantos anos a escrever num ritmo tão alucinante e furioso, precisava de escrever como quem precisa de oxigénio: não conseguia viver sem aquilo, precisava de escrever para viver. Para aguentar a vida. Em certa medida, aquilo era o sentido da vida do meu amigo poeta, talvez em virtude do modo como via a própria vida: um processo simultaneamente terrível e risível. Encarava, portanto, a sua existência como algo que se deve sofrer e de que se deve rir.

“É uma espécie de filosofia dos duros adaptada a gajos com pouco músculo e pouco desejo de matar”, disse-me ele mais do que uma vez. Uma vez acrescentou ainda: “é uma questão estilística. Um gajo que se ri da própria dor tem pinta. Tem estilo. De uma forma meio bera, mas tem estilo. E isso, num poema, por exemplo, é melhor do que uma lamechice qualquer. Na vida, ainda mais. Ninguém tem paciência para choraminguices. E a vida deve ser escrita assim. Sem choraminguices e com estilo.”

Escrevia, portanto, a vida tal como a via: um processo simultaneamente terrível e risível. E não via qualquer incompatibilidade nisso. Sofrer e rir eram, para ele, duas faces da mesma moeda, dois momentos do mesmo processo. Aos momentos felizes, ou pacíficos, em que não se ri nem se chora, mas se contempla, via-os ele como intervalos do processo, uma espécie de pausa para café que um gajo tira da própria vida. “Vou sair da vida para ir ao café, ou para ir olhar para a relva, ou para ir à praia ver as gajas em biquini”, dizia ele.

O resto era escrever para viver e viver para escrever. De tal forma que o meu amigo poeta tinha um verdadeiro terror perante a possibilidade de não conseguir escrever, de interromper a corrente durante demasiado tempo. Era, para ele, um medo maior que o medo da morte. Era o medo de se transformar numa espécie de vegetal: um gajo que não sofre e não se ri. Uma espécie de Buda plantado debaixo de uma árvore, a engordar e a ganhar bolor enquanto dá conselhos aos outros e lhes explica o que é a vida e como se deve vivê-la. Talvez fosse esse o impulso que levava o meu amigo poeta a escrever. A páginas tantas, chega ele mesmo a escrever que “…quero ser um/ /anti-buda…”, mais ou menos a meio do seu primeiro livro. Agora que penso nisso, talvez seja mesmo no centro matemático do livro e a coisa não tenha sucedido por acaso.

Portanto, podemos concluir que o meu amigo poeta tinha medo de perder a intensidade da vida: deixar de sofrer, deixar de rir, deixar de escrever. De perder uma hipótese qualquer de experimentar qualquer coisa. De não ter mais que contar. De não ter como contar algo a alguém por lhe faltar o ter experimentado algo de semelhante.

Creio que era por isso que se metia nas experiências mais variadas, bizarras e coerentes entre si. Tudo era fruto do desejo de oscilar entre dois pólos, furiosamente: rir e sofrer; sofrer e rir. E tinha tenacidade, o meu amigo poeta. Era decidido, não se ficava pelas intenções. Tanto o queria, que acabava por se ver metido, pelo menos uma vez por semana, num episódio memorável por um outro motivo. Graças a esta particularidade, creio que a sua vida seria impossível de narrar senão por intermédio de fascículos, de episódios.

Vendo as coisas por outro lado, porém, ainda que talvez de um modo mais cínico, talvez o meu amigo poeta se metesse em cenas grotescas com tal frequência apenas devido ao facto de ele mesmo ser tão grotesco como as embrulhadas em que se metia.

Enfim, mais uma das teorias que tenho sobre ele. Como muitas outras, uma teoria por confirmar.