I
Não me recordo exactamente do ano em que o conheci.
Corria a década de 70, faltavam um, dois, três anos para a revolução. Não
consigo ser mais preciso do que isto. Sei que, na altura, andávamos os dois
pela casa dos vinte e muitos, trinta. Foi numa festa de passagem de ano, em
casa de um amigo que tínhamos em comum: o Bertinho, o coleccionador, que
infelizmente já não está entre nós. Morreu um ou dois anos depois da noite em
questão.
Era um gajo com as suas particularidades, o
Bertinho. Sempre que o final de ano se aproximava, convidava toda a gente a
passar lá em casa para um copito. O modesto convite revelava bem o seu modo de
ser. Era muito dado aos eufemismos. Qualquer pessoa que recebesse pela primeira
vez o convite para o tal copito certamente não imaginaria que o esperava uma
festa de arromba, normalmente extensível até à tarde do dia seguinte, o
primeiro do ano. Havia tudo do bom e do melhor. Uísque do bom, vinho do bom,
cerveja a rodos, carnes, mariscos e presuntos de primeira categoria. E da
animação também ninguém se podia queixar. Havia sempre um ou dois concertos,
leituras ou declamações e números mais excêntricos que variavam de ano para
ano. Lembro-me de um ano em que vieram três strippers e de um outro em que houve
um pequeno número de circo, só para terem noção do tipo de coisa de que estou a
falar.
Já o género de pessoa que por ali parava tinha
muito pouco a ver com a opulência do evento. Era a maior corja de preguiçosos,
bêbados e boémios que alguma vez se podia juntar. Dir-se-ia que aquela era a
forma de Bertinho nos proporcionar um pequeno luxo uma vez por ano.
Eu estava a bater um couro a uma gaja, mas
percebi rapidamente que ela não estava muito interessada em ir comigo a lado
nenhum. O bom senso fez-me desistir e dedicar-me antes a procurar uma bebida. Atravessei
o salão, subi as escadas para o terraço. Tratei de agarrar num copo de vinho e
fui encostar-me à varanda. Acendi um cigarro e deixei-me ficar ali encostado,
voltado para o jardim. Passaram dois ou três minutos e houve um gajo que se foi
encostar a um ou dois metros de mim. Como não estava muito bem disposto, nem
olhei para ele. Não tinha vontade de conversar. Mas ele, pelos vistos, não
estava interessado noutra coisa.
“Corre-lhe mal a noite, hã…?”
Que bom, pensei eu. Um tagarela. Mesmo o que
me apetecia. Ainda por cima, cheirava mal. Um odor azedo emanava do seu corpo.
Eu sentia-o mais intensamente do que queria.
“Nem bem, nem mal”, respondi eu em tom seco.
Ele manteve-se calado por alguns momentos.
“Eu vi-o a falar com ela”, disse ele.
Continuei a olhar para baixo, para o jardim:
“Ai sim?”
Pareceu mesmo que, desta vez, ele tinha
percebido. Mas não. Impressão errada. Aguentou calado mais uns segundos e
depois começou a falar outra vez. Desta vez, manteve-se também voltado para a
frente.
“Eu também tentei, sabe?”
Olhei para ele pela primeira vez. Tinha um
copo de uísque na mão, quase a transbordar. Aquilo não era um uísque duplo, era
pelo menos um uísque quádruplo. O corpo não se apoiava no varandim, dava antes
a impressão de estar tombado por cima dele. Tinha o cabelo negro todo
despenteado. Tinha vestidas umas calças de ganga velhas e o blazer mais coçado
que alguma vez vi. Sobre o peito, uma grande mancha de vómito humedecido e mal
limpo. E o gajo ali a dizer-me que também tinha tentado. Como se isso contasse
para alguma coisa.
Repeti: “Ai sim?”
“Tentei, pois. É podre de boa. Mas há-de ir
para a cama com um imbecil qualquer”, continuou ele. “Infelizmente, conheço bem
o género.”
“Está a querer dizer com isso que ela não vai
para a cama consigo?”
Parou para pensar durante um momento.
“Sim”, respondeu ele. “Nem comigo, nem
consigo. Há-de ir com um imbecil qualquer. Tal como disse antes.”
Não respondi.
“Se não quiser conversar, ninguém o obriga”,
disse ele.
“Ainda bem.”
“Pronto, já percebi”, disse ele.
Pôs os braços no ar para sublinhar aquilo que
estava a dizer, como se alguém lhe tivesse apontado uma arma.
“Sou poeta, sabe? Não sou um imbecil
qualquer”, disse ele, muito sério.
Depois, emborcou o uísque de uma vez, soltou
um ronco e deu meia volta, meio a cambalear. Começou a caminhar em direcção ao
carrinho das bebidas, com uma expressão aborrecida, mas, ao segundo passo,
falharam-lhe as pernas. Caiu redondo no meio do chão.
Esperei um bocado para ver se alguém o ia
ajudar. Felizmente, alguém foi pegar nele, o que me ilibou de responsabilidades
maiores. Peguei no meu copo e regressei ao anterior do edifício.
Nessa noite, embebedei-me a sério. Acabei por
aterrar num sofá, já de dia. E ali fiquei. Mal eu sabia quem estaria ao meu lado quando
acordasse.
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II
Não deve haver muitas maneiras de começar pior
um ano novo.
Acordar num sofá desconhecido, num salão
desconhecido. Ter o corpo pastoso, entorpecido e a sensação de se ser mais
velho do que realmente se é. Ser um objecto pesado, perro, agredido pela luz
solar, envolvido num despertar convulsivo e confuso. Mal ergui o tronco, a
cabeça começou a latejar. Uma dor aguda, localizada, invasiva. Como se o meu
crânio estivesse demasiado cheio. Sentia-me sujo, pegajoso. Parecia que alguma
coisa tinha secado sobre a minha pele durante o sono, formando uma espécie de
película.
E sede, deus do céu. Tinha tanta sede.
Quando olhei à minha volta, os meus olhos demoraram
a focar. Houve um instante em que as formas que me envolviam pareciam não ter
contornos, estavam esbatidas no ar, diluídas na claridade agressiva que se
alastrava pelo espaço. Depois olhei para baixo, vi as minhas pernas sobre o
sofá, à esquerda o limite do sofá e, à direita, um monte de casacos empilhados
de onde se ergueram dois braços. Sim, como num filme de vampiros ou zombies,
dois braços surgindo esticados num acordar violento. Depois uma cabeça, um
tronco. Um rosto dominado por uma expressão perdida. Não o reconheci
imediatamente.
As peças do puzzle que era a noite anterior
começaram a juntar-se enquanto nos olhávamos, incrédulos, dois estranhos que
acordam no mesmo sofá sem saber como. Era ele, o poeta. O mesmo da noite
anterior.
Fechou os olhos e levou as mãos à cabeça.
Gemeu. Grunhiu. O rosto contorceu-se numa expressão de mal-estar absoluto.
“Foda-se, Jesus, minha nossa senhora”, disse
ele, “como é que eu vim aqui parar, caralho?”
Olhou para baixo, apalpando o corpo para ver
se estava inteiro. Começou à procura de qualquer coisa dentro do casaco.
Parecia desesperado. Com gestos frenéticos, revolvia violentamente os bolsos do
casaco, das calças, da camisa. Apesar de ter procurado pelo menos três vezes em
cada bolso, o exercício completo não deve ter durado mais que quarenta
segundos.
Lá desistiu. Abanou a cabeça para os lados,
desanimado. Só depois olhou para mim.
“Lembro-me de si”, disse ele, com o indicador
esticado na minha direcção. “Você viu o meu caderno?”
“Não, não vi”, disse eu.
“Lembra-se do que aconteceu?”, perguntou ele.
“Não me lembro de nada. Quer dizer, de quase nada… É que o seu rosto é-me
familiar.”
“Não, não me lembro”, respondi.
“Merda. Mais um.”
“Mais um?”
“Mais um poema. Se fosse juntar todos os que
já perdi assim, tinha material para quatro livros ou mais.”
Parou de falar por instantes. Depois teve um
pequeno espasmo. Uma expressão de incómodo instalou-se-lhe no rosto.
“Sabe onde é a casa de banho?”
“Sim, é já ali à…”
Ia a meio da frase quando ele vomitou no meio
do chão.
“Merda”, disse ele enquanto recuperava o
fôlego, “tenho de arranjar uma mulher rapidamente.”
Depois começou a respirar outra vez com mais
força. Vomitou novamente.
Eu via aquilo tudo a sair da boca dele,
escancarada, e começava a sentir-me mal disposto. Senti também um espasmo. Foi
a minha vez. Saiu tudo numa só rajada. Um vómito prolongado, poderoso. O
estômago a revolver-se como se o seu interior estivesse a tentar escapar cá
para fora. Era avermelhado, granulado, com relevos inesperados de aspecto
esponjoso, e estava ali à minha frente, no chão. O do poeta era amarelo e
tinham espuma nalgumas partes.
Olhámos um para o outro. Mantivemo-nos sérios
por um ou dois segundos, mas depois largámos a rir às gargalhadas. Ele parou de
rir, por momentos, e vomitou outra vez. Estava a limpar a cara quando se virou
para mim, a sorrir, e disse, como se estivesse num filme:
“Pressinto o início de uma bela amizade.”
Acabámos por passar lá o dia. Eu, o poeta, o
Bertinho, mais dois gajos e duas gajas que pareciam ter dormido juntos. Não os
quatro ao mesmo tempo, mas sim dois em cada cama. Embora o contrário também não
fosse de estranhar naquelas ocasiões. O Bertinho providenciou um lanche
ajantarado e mais copos. Ainda não era noite e já estávamos bêbedos outra vez.
Eu e o poeta tornámo-nos imediatamente amigos.
Não é que tivéssemos assim tanto em comum. Era mais como se partilhássemos uma
linguagem comum. Uma espécie de código, uma certa maneira de olhar para as
coisas, de ver o mundo. Ainda hoje não consigo explicar muito bem porque é que
se gerou entre nós uma afinidade tão grande.
O facto é que fiz um amigo. Um bom amigo, como
o tempo se encarregou de demonstrar em variadas ocasiões.
Bem vistas as coisas, não era uma maneira
assim tão má de começar o ano.
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III
Desde essa tarde, desde esse primeiro dia do
ano, não foi preciso muito tempo para perceber que eu e o poeta nos tornaríamos
amigos.
Apesar de sermos muito diferentes,
entendíamo-nos.
Essa afinidade tornou-se evidente desde a
tarde passada em casa do Bertinho. Começámos a ver-nos com uma frequência cada
vez maior e, à medida que a relação se estreitava, tornava-se visível que cada
um de nós equilibrava o outro. O meu amigo poeta com a sua natureza excessiva,
excêntrica, impulsiva, e eu, homem tranquilo, ponderado, estável. Ele com a sua
coragem desesperada, eu com a minha tranquilidade dificilmente perturbável. As
palavras que usávamos não eram as mesmas, o que nos entusiasmava não era o
mesmo, os nossos prazeres, ódios e medos eram muito distintos, mas, ainda
assim, compreendíamo-nos de tal forma que o primeiro instinto que cada um de
nós despertava no outro era o de se ser tolerante. Havia uma facilidade na
nossa convivência que compensava todas essas diferenças. E cada um de nós
aceitava a natureza do outro vendo-as como uma dádiva e não um obstáculo.
Foi, por isso, com naturalidade, que se tornou
hábito entre nós trocarmos confidências que não partilhávamos com outras
pessoas. Nunca nos faltava assunto de conversa. Confiávamos um no outro como
não confiávamos em mais ninguém. Tínhamos, por vezes, discussões violentas, mas
nunca houve um diferendo que não pudéssemos ultrapassar. Além de tudo isto,
posso ainda dizer convictamente que, da mesma forma que a minha vida não teria
sido tão rica sem a companhia do meu amigo poeta, a vida dele teria sido bem
mais dura sem a minha companhia.
Simplificando, pode-se dizer apenas que em
muito pouco tempo já éramos grandes amigos. Essa amizade era absoluta e
incondicional. E duraria décadas.
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IV
Mais ou menos a partir dos trinta e cinco
anos, o meu amigo poeta tornou-se reconhecido em certos círculos. Havia quem
gostasse mesmo do que ele escrevia, mas os seus leitores encaixavam-se
maioritariamente numa outra categoria. Eram pessoas suficientemente cultas para
saberem fingir que compreendiam o seu trabalho, mas faziam-no por todos os
motivos errados. Acabou por formar-se a dada altura uma espécie de culto ao
redor dos escritos do meu amigo poeta. Mas, na sua maioria, quem gostava do que
ele escrevia acabava por gostar mais da exclusividade de ser um dos poucos a
conhecer a sua obra do que a obra em si.
Nunca deixou de escrever poemas. Em certos
círculos, dizia-se que ficava melhor à medida que passava o tempo. “Como o
vinho do porto”, dizem os entendidos da coisa, “mas com um travo mais amargo,
mais sujo, e, ainda assim, terno, simples e profundamente humano”.
O meu amigo poeta, por seu turno, estava-se
mais ou menos a marimbar para o assunto. Não precisava de aprovação para
continuar a fazer o que gostava de fazer e, como nunca contou com o que
escrevia para ganhar a vida, aproveitou muitas vezes para se divertir com
situação. Tão pouco caiu no erro de alguma vez ter considerado a palavra como
sagrada.
Não havia, de facto, nada sagrado para o meu
amigo poeta. Bem pelo contrário. Era um dos mais empenhados fanáticos do anti-sagrado.
Estava-se a cagar para a crítica e, em última análise, para os seus leitores.
Tão pouco frequentava a missa ou comícios partidários. Sabia que, a partir do
momento em que começasse a pensar demasiado nesse tipo de coisas, perderia a
liberdade e a independência de espírito que eram para ele fundamentais.
“Sagrado?”, perguntava ele por vezes, entre
goles de bagaço, ou a meio de uma sandes de pernil. “Prefiro as coisas
sagradinhas. Coisas palpáveis. Como uma refeição em cima da mesa ou um orifício
morno e húmido onde enfiar aquela parte do corpo que os homens têm e as
mulheres não.”
Mas a verdade é que todos os dias se sentava à
frente de uma folha de papel. Não era preciso que escrever fosse sagrado para
que o meu amigo poeta encarasse a actividade com uma devoção de monge.
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V
A forma como o meu amigo poeta
lidava com a escrita foi mudando com o passar do tempo. O que começou por ser
um processo irregular e verdadeiramente compulsivo, acabou por transformar-se
gradualmente num hábito sabiamente domado, num processo que conseguia gerir sem
que a coisa perdesse a sua naturalidade.
No princípio é que foi mesmo o
diabo. Acontecia com igual frequência o meu amigo poeta ficar sem escrever
durante semanas a fio e ser assaltado por surtos que o forçavam a passar dias
inteiros fechado em casa a escrever.
Dois ou três anos depois de o ter
conhecido, viu-se o meu amigo poeta de um desses violentos ataques da musa.
Passaram-se semanas em que ninguém lhe pôs os olhos em cima, porque estava
enfiado em casa a escrever os seus míticos Passeios
em liberdade, a sua ode à independência de espírito, do corpo e dos comportamentos,
um elogio das liberdades da carne e do espírito, conforme me confidenciou
depois, obra cuja génese derivava directamente do facto de vivermos à época sob
o jugo da ditadura. Foram mais de quarenta poemas, bastante longos, escritos de
rajada, num estado de intensa fúria e permanente obsessão.
O meu amigo poeta lembra-se bem
do dia em que finalmente terminou o livro. A razão é simples: quando acabou de
escrever, o mundo tinha mudado: era o dia 27 de Abril de 1974.
Quando lhe falámos da revolução, quando
lhe contámos tudo o que acontecera nos dias anteriores, ficou num estado
indescritível. Parecia estar prestes a explodir e a implodir ao mesmo tempo.
Tremia que nem varas verdes, saiu do café para dar pontapés num caixote do lixo
e tudo. Além de ter perdido o acontecimento pelo qual todos ansiávamos, o meu
amigo poeta via agora os seus mais ricos poemas reduzidos a uma condição de
quase inutilidade, em virtude da radical mudança do contexto a que se referiam.
Enfiou-se outra vez em casa.
Todos rejubilavam com as conquistas de Abril, menos o meu amigo poeta.
Sentia-se posto de lado, humilhado pela má fortuna, ostracizado pelo mundo que
o rodeava. Queimou os poemas todos e, apesar da tentação por vezes se fazer
sentir, nunca mais escreveu o elogio de coisa nenhuma.
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VI
O meu amigo poeta falou-me apenas
uma vez, de uma forma genérica, sobre o modo como via a poesia.
“Não é do pensamento que um poeta
vive. É do que está por baixo. Não é aquilo que uma voz interior nos martela
por dentro da cabeça, mas o conjunto dos lugares de onde ela vem”, disse ele.
Parou, limpou os óculos, voltou a colocá-los no rosto. Distraiu-se a brincar
com uma migalha de pão que encontrou no tampo da mesa. Depois, enquanto a
esfregava entre o indicador e o polegar, continuou:
“Posso dizer-te que todos os meus
poemas se reportam a situações que eu mesmo vivi. E posso dizer-te também que
ninguém, nem mesmo aquelas pessoas que estiveram lá, a viver aquilo comigo,
consegue adivinhar a que situação ou situações se refere cada poema. Mas, de
uma forma ou de outra, elas não deixam de perceber e de viver os meus poemas.
Porque o que se passou comigo faz parte do que eu vivi, mas o que está por
baixo, escondido, à espera de ser colhido, faz parte de todos nós.”
Por momentos, fiquei mesmo
interessado naquilo que acabara de ouvir. Achei a reflexão verdadeiramente
estimulante. “Às vezes, este gajo até diz umas coisas engraçadas”, pensei eu na
altura.
Mas, mal olhei novamente para o
meu amigo poeta, apanhei-o a mirar o decote da gaja da mesa ao lado com todo o
descaramento. Tinha a boca aberta e os olhos completamente arregalados e olhava
para as duas protuberâncias com uma expressão de incredulidade quase infantil.
Só lhe faltava babar-se.
Não quero, de modo nenhum, pôr em
causa a qualidade do busto da referida senhora. Eram, de facto, duas mamas
magníficas. Só quero dizer que, no fim de contas, talvez aquela treta toda de
que o meu amigo poeta falara não merecesse tanto interesse quanto isso.
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VII
O meu amigo poeta ganhou sempre a vida com trabalhos
de merda. Daqueles ofícios para gente pouco ambiciosa, ou pelo menos assim
considerados pelo comum dos mortais.
Houve uma altura, porém, em que conseguiu
juntar dinheiro, aos poucos e com muita dedicação. Um dia, decidiu fazer um
investimento. Comprou uma dezena e meia de caixotes com volumes de tabaco.
Ninguém percebeu aquilo. Nunca vi o meu amigo poeta com um cigarro na boca e
presumo que com os outros se passe o mesmo.
Pouco depois, encontrei-o à porta de um tasco.
Andava a entregar maços de tabaco aos comensais do sítio, na sua maioria pobres
diabos que por ali passavam para esquecer as agruras da sua vida modesta. Em
troca, recebia umas quantas moedas, por vezes após alguma discussão.
Perguntei-lhe o que andava a fazer. Respondeu-me ele, com o pragmatismo
habitual e um encolher de ombros esclarecedor:
“Contrabando, claro.”
Andava a
vender os volumes de tabaco que comprou há anos.
Depois, explicou-me a
operação com mais detalhe. Disse que a revenda do tabaco, por aí, lhe garantia
um lucro de duzentos e qualquer coisa por cento sobre o preço de compra
original.
E disse-me também que a poesia verdadeira estava mesmo aí: num mundo
como aquele em que vivemos, não se paga a ninguém para escrever poemas. As
pessoas pagavam é a quem roubava melhor que os outros.
“A poesia verdadeira está em
subverter esse roubo, direccionando-o para o cumprimento de um fim mais digno”, concluiu ele.
Fiquei a matutar naquilo por alguns momentos.
O silêncio deve ter incomodado o meu amigo poeta. Ou então, interpretou-me mal.
Pôs-se a andar dali. A meio caminho, contudo, estacou. Voltou-se para trás.
“Qualquer dia, já juntei o suficiente para
começar a fumar!”, gritou.
E desapareceu, às gargalhadas, na esquina mais
próxima.
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VIII
A casa do meu amigo poeta também tinha as suas
particularidades.
Era muito pequena, com divisões minúsculas.
Na
sala, o tecido do sofá apresentava uma boa meia dúzia de buracos bem grandes,
deixando à vista o estofo. Livros, revistas e pilhas de papéis acumulavam-se
nas estantes que cobriam quase todas as paredes, por vezes em fileiras duplas,
deixando pouco espaço a quem quisesse caminhar por entre eles. Os
electrodomésticos estavam todos a precisar da reforma e havia ali muito mais pó
do que em qualquer outra casa que eu tinha visto até hoje. Por vezes, havia
latas de cerveja ao redor do gira-discos e vinis espalhados pelo chão sem
cuidado algum.
Na cozinha, a loiça suja acumulava-se. O fogão estava já negro
devido aos molhos que ali foram solidificando, queimando e requeimando com o
passar do tempo. O forno tinha pedaços de comida encrostados em tudo o que era
canto.
O chão era de madeira, mas tinha-se a impressão de caminhar sobre
cabelos e pó, tal era a sua profusão ali. Era uma casa escura, com poucas janelas, e as
persianas estavam sempre corridas.
Surpreendentemente, a varanda era enorme e
arejada. Corria sempre ali uma brisa fresca. E a vista, apesar de não
incidir em nada particularmente belo, não deixava de ser agradável.
Pode dizer-se, talvez, que a casa do meu amigo
poeta o reflectia na perfeição.
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IX
Naquela tarde, encontrei o meu amigo poeta a
ler no café. O que não tem nada de especial, visto que o café era um dos seus
locais de leitura predilectos. Já a forma como estava a ler era mais
particular: sempre que chegava o momento de voltar uma página, o meu amigo
poeta erguia o indicador à altura da boca, dava uma delicada lambidela na ponta
do dedo, e só depois virava a folha. Nunca o tinha visto fazer aquilo. No
entanto, a naturalidade do seu gesto sugeria que a sua natureza era já a de um
automatismo. Qualquer pessoa que não o conhecesse e o visse a fazer aquilo,
pensaria certamente que se tratava de um hábito antiquíssimo. Como se o meu
amigo poeta nunca antes houvesse voltado uma página sem aquele movimento
prévio.
Como não queria incomodar o meu douto
companheiro, e crendo que lá haveria de ter os seus motivos para se comportar
daquela maneira, não lhe fiz questão alguma acerca daquilo. Limitei-me a
sentar-me, pedi o meu café e pus-me a ler o jornal, como era habitual. Volta e
meia, contudo, a curiosidade levava-me a lançar um ocasional olhar de soslaio
ao meu amigo poeta. Lá estava ele. Levava o dedo à boca, dava-lhe a lambidela,
voltava a página. Aquilo intrigava-me, mas decidi ainda assim não perguntar
nada ao meu amigo poeta. Sabia que era bem possível que me respondesse com maus
modos e, sinceramente, não me apetecia estar ali a envolver-me em pequenos
feudos com ele.
Pouco depois, chegou o Mendonça e sentou-se
também. Era pintor. Trazia sempre o seu caderno de esboços debaixo do braço,
uma expressão aluada no rosto e a farta cabeleira encaracolada nas mais
improváveis disposições. Nunca se penteava. Cumprimentou-nos, pediu café e
bagaço, e, enquanto os bebia, trocámos algumas impressões sobre a situação
política da altura. Fizemo-lo discretamente, como fazem as pessoas com bons
modos, apesar de nenhum de nós ser caracterizado por ter bons modos. Depois, o
Mendonça embrenhou-se nos seus esboços e tanto eu como o meu amigo poeta
retornámos às respectivas leituras.
Passou-se uma boa meia hora, pois lembro-me de
ter passado também eu da leitura do jornal para outras leituras. Provavelmente,
uma qualquer peça de teatro, formato que me entusiasmava particularmente na
altura, e pelo qual cheguei a andar obcecado. Estava a meio de um diálogo
qualquer, quando o Mendonça soltou uma gargalhada que me distraiu da tarefa. De
facto, foi um riso tão violento que chegou a assustar-me, levando-me a dar um
pequeno salto na cadeira.
“A lamber o dedo?”, perguntou ele, a rir-se
que nem um perdido.
“Que é que tem?”
Decidi intrometer-me na discussão:
“Realmente”, comecei eu, “o que é que te deu
agora para começar a lamber o dedinho antes de virar a página?”
O meu amigo poeta remeteu-se por instantes ao
silêncio. Calculo que deva ter-se sentido embaraçado.
“Opá, acho que dá um certo estilo”, acabou por
admitir.
E explicou-nos que tinha visto um gajo
qualquer a fazer aquilo noutro café. Tinha achado que o tipo tinha muita pinta
e decidiu adoptar o mesmo estilo para as suas leituras. Andou mesmo a treinar
durante alguns dias, como um actor, e agora, que se sentia verdadeiramente
capacitado para incorporar o gesto, decidira passar da pesquisa à prática.
Eu e o Mendonça ficámos parvos com o que
acabáramos de ouvir. Nunca na vida teríamos imaginado o meu amigo poeta a
perder tempo com uma preocupação tão frívola.
“E então? Dá ou não dá?”, perguntou ele.
“Dá? Dá o quê?”
O meu amigo poeta ensaiou um sorriso charmoso,
que acabou por não lhe sair bem. Respondeu:
“Uma certa pinta. Dá ou não dá?”
Houve um silêncio da nossa parte. Um silêncio
que falava por si. Eu e o Mendonça encolhemos os ombros. Ele voltou aos
desenhos e eu à leitura. O meu amigo poeta acabou por encolher também os
ombros, alguns segundos depois. Regressou à leitura.
Nunca mais o vi a lamber o dedo antes de virar
uma página.
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X
O meu amigo poeta pensava muitas vezes no seu
próprio funeral. Não é que tivesse grande pressa ou grande medo de morrer, mas
pensava muito no assunto, pensava muito mais naquilo do que uma pessoa normal.
“É uma daquelas coisas que só se fazem uma
vez”, explicava ele. “Mais vale aproveitar para fazer qualquer coisa decente.”
Queria que tudo se passasse ao ar livre.
Queria que as pessoas bebessem e a bebida ficasse por sua conta. E queria
também que se arranjassem umas colunas, de mil e tal watts no mínimo, ligadas
ao seu velho gira-discos, para animar a coisa.
Tencionava o meu amigo poeta que o caixão
entrasse ao som de ballad of a thin man,
de Bob Dylan, seguindo-se na lista as músicas one scotch, one whiskey, one bourbon e sympathy for the devil, momentos que os convidados deveriam
assinalar com um grandioso emborcar colectivo de uma tequilla de penálti. Neste
ponto, chegar-se-ia lume ao caixão, ao som de the immigrant song dos Led Zeppelin.
Tinha pensado a coisa segundo os mesmos
princípios que orientavam a sua escrita: entrar devagar e com algum incómodo,
passar a meio por algo selvagem e terminar a todo o gás: “no fim, tem de ser
sempre a abrir dali para fora!”
Assim que o meu amigo poeta acabou de me dar
conta dos planos para a sua despedida deste mundo, pensei por momentos no que
tinha acabado de ouvir.
“Então é só música americana? Não queres nada
português?”
“Não. Quero um funeral à cowboy.”
“Então e os restos? Onde é que queres que a
gente os meta?”
“Sei lá. Isso importa para alguma coisa? Na
altura estou morto.”
Achei que aquilo não fazia muito sentido, mas
não disse nada. Conhecendo-me a mim e conhecendo-o a ele, sabia que discutir o
assunto não adiantava grande coisa.
A conversa ficou por ali.
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XI
Decidiu certo dia o meu amigo poeta, numa
altura em que a sua vida profissional lhe permitia viver menos aflito com as suas
economias, que ia mudar-se.
Talvez dizer que a sua vida profissional
corria de feição seja pouco acertado. Na verdade, duas senhoras abastadas
decidiram patrocinar a criação do meu amigo poeta. Os motivos, como será fácil
adivinhar, não eram os mais nobres. Gostavam de ostentar aquilo como uma espécie
de título nobiliárquico. A partir daquele momento, eram mecenas. Coisa chique,
portanto, que compensava sem dificuldade a pequena esmola que dispensavam todos
os meses ao meu amigo poeta.
Perdão. Divago. Regressemos ao assunto.
O meu amigo poeta, vendo-se assim numa situação
de inesperada abastança, decidiu que era altura de mudar o seu domicílio.
Queria uma casa maior numa rua mais calma.
Queria morar num edifício cujas paredes não estivessem permanentemente a
descascar-se. Queria uma casa arejada, um sítio onde, apesar dos seus
deploráveis hábitos de higiene domiciliária, o ar não ganhasse aquela
desconfortável densidade característica do excesso de pó em suspensão.
Apesar de nunca o ter admitido, creio que um
certo medo se apossara dele. Talvez medo seja pouco. Talvez seja mais exacto
dizer que andava apavorado. Lembro-me de o ver tornar-se, nessa altura, mais
sério e reservado do que o habitual. Nessa semana, ocorreram duas rixas na sua
rua. Uma delas terminara à navalhada. Portanto, apoquentava-o a perspectiva de
levar também uma naifada no bucho.
Acabou mesmo por mudar-se para um apartamento
mais caro, numa rua mais tranquila de uma zona mais segura. Cheguei a visitá-lo
para ver a casa. Mandou vir dois sofás. Trocou uma das suas mesas decrépitas
por uma novinha em folha. O seu novo domicílio era espaçoso, arejado, bem
iluminado. Os acabamentos eram impecáveis. Era uma casa de fazer inveja a muita
gente.
Mas o meu amigo poeta não aguentou.
Aquilo não era para ele. Não conseguiu
escrever uma única linha na sua casa nova. Papéis amarrotados com frases a meio
amontoavam-se pelos cantos. Sentia falta do escuro, do sujo, da velha varanda
que nunca varria e tão pouco aproveitara convenientemente. Sentia falta do
clamor das ruas, da sombra. Sentia falta da vizinhança ensandecida. Sentia um
peso negro, um vazio na alma – a consciência de se ter aburguesado.
Passados dois meses, mandou empacotar a
mobília e regressou ao seu velho apartamento.
No meio disto tudo, o que me espanta é que os
vizinhos deram pela falta dele. A velhota da mercearia disse-lhe, de lágrima ao
canto do olho, que tivera saudades, que aquilo sem ele não era igual, que
parecia que faltava ali qualquer coisa. Vá-se lá saber porquê.
Quanto às duas senhoras, o meu amigo poeta foi
igualmente célere a resolver o assunto. Escreveu-lhes a dizer que estava farto
daquela proxenetice. Que a arte que praticava era superior àquela brincadeira
de mau gosto. Que agradecia, mas estava farto de se sentir o Lulu das honradas
senhoras. Enviou a carta juntamente com o último cheque que recebera e não teve
mais notícias delas.
O meu amigo poeta, contudo, não era burro
nenhum. Antes de lhes devolver o dinheiro, deu conta de todas as despesas que
tivera com as duas mudanças. No final, dirigiu-se ao restaurante mais caro da
cidade. Ainda que não o soubessem, a última coisa que as duas mecenas proporcionaram
ao meu amigo poeta foi um bife mal passado com batatas fritas.
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XII
Quando o meu amigo poeta tinha sede, aquela
sede da alma que leva os homens a beber demais (nesses momentos, para ele, o
conceito de beber demais deixava de fazer sentido), gostava de ir aos tascos
onde se canta o fado. Contudo, não era a música que o atraía.
Desenvolvera um esquema eficaz para que a
cardina lhe saísse mais barata: sequências de finos intercalados com penaltis
de bagaço. A cerveja vinha sempre morta e o bagaço era do mais vil, mas desde
que a coisa funcionasse, estava tudo bem para o meu amigo poeta. Por cada três
finos, lá emborcava um bagaço. Repetia a sequência três ou quatro vezes e
estava pronto para a festa.
Sempre que o fadista pedia silêncio, desatava
a rir às gargalhadas. E ele, que até é habitualmente mais do que comedido no
que toca a ruídos, ria nesses momentos um riso histérico, ensandecido, brutal e
cavernoso. Era capaz de interromper a mesma música duas ou três vezes, ou, se a
coisa corresse mesmo bem, adiar o seu início por alguns minutos. E repetia e
voltava a repetir a gracinha, como uma criança que quer a todo o custo ser o
centro das atenções, até que os fadistas, de ânimos tomados de uma soberba
raiva, ampliada pelos copos de que também eles haviam abusado, se viravam a
ele. Faziam peito, erguiam o rosto, arregaçavam as mangas e, de rostos animados
por uma vermelhidão incrível, acabavam por convidar o meu amigo poeta a
resolver o assunto lá fora, que é o que fazem os cavalheiros.
Conseguia enfiar um ou dois socos nos seus
adversários, mas os seus golpes não faziam mossa. E fartava-se de levar. De
modo que terminava sempre estendido num canto sujo e escuro, a tentar perceber
se lhe faltava algum dente. Ajudei-o a reerguer-se em muitas ocasiões deste
género. De seguida, arrastava-o para o carro e deixava-o em casa. Mas, à medida
que a cena se ia repetindo, também eu me cansei daquele capricho do meu amigo
poeta. Estávamos dentro do carro e eu, já farto daquele seu capricho
inexplicável, perguntei-lhe por que raio cismava ele em continuar a fazer
aquilo, se já tinha a certeza de que ia levar na boca.
O meu amigo poeta riu-se.
“Silêncio, que se vai cantar o fado?”
respondia ele, “mas quem é que eles pensam que são?”
Era assim o meu amigo poeta. Nunca gostou
muito de que o mandassem calar.
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XIII
Havia pouca coisa que o meu amigo poeta
detestasse mais do que apresentações de livros. Era o tipo de evento que o
deixava nervoso, despertando nele uma curiosa sensação, um misto de medo,
vergonha e raiva.
Muitos dos seus pares, sendo que por alguns
destes o meu amigo poeta nutria sentimentos de verdadeira afeição e admiração,
muitas vezes mútuos, chegavam mesmo a ressentir-se disso. Era comum que o meu
amigo poeta faltasse ao lançamento dos seus livros. Houve até quem tivesse
deixado de lhe falar por causa disso.
Contudo, na verdade, não havia muito a fazer.
Para ele, era uma coisa visceral. Achava que, de uma maneira ou de outra, a
apresentação de um livro, enquanto evento público e oficial, acabaria sempre
por tornar-se num espectáculo de circo. Um espectáculo de circo útil, em certa
medida, mas ainda assim um espectáculo de circo.
O meu amigo poeta fervia facilmente quando era
confrontado com a vaidade, com o aproveitar de um palco com o único propósito
de massajar o ego, com a hipocrisia de se que dizer que se amam as letras e as
artes, quando o que se ama verdadeiramente é a oportunidade de projectar uma
imagem de irreverência, de inteligência, de interlocutor privilegiado com os
livros, essa coisa que muitas vezes passa por ser sagrada, sem o ser realmente.
“Não sei”, disse-me ele uma vez, “chega-se ali
e parece que toda a gente está a tentar ser como uma bela estátua que se mexe.
As poses são trabalhadas, falseadas. Como se seres humanos se tenham produzido
para que possam ser contemplados, admirados e invejados. Há mexericos, há
maledicência, há coscuvilhice. Há sempre, por ali, um monte de mentiras. Um
espectáculo mesquinho e desonesto, em que o livro é o menos importante dos
intervenientes. Passa a ser apenas um pretexto.”
Concluiu, depois: “Por outro lado, toda a
gente espera que te comportas da mesma maneira. E eu, que não consigo
transformar-me em estátua, sinto-me como se estivesse nu no meio de uma data de
gente vestida. É horrível. Ao mesmo tempo, apetece-me pôr-me aos berros com
toda a gente que por ali anda e desaparecer do meio daquela merda toda, só para
que ninguém me veja.”
Fez uma pausa para limpar os óculos. Olhou
para longe.
“Quanto a apresentar os meus, também não
gosto. É como se toda a gente fosse um juiz à espera que eu me justifique. É
absurdo. Para mim, a escrita é sobretudo um exercício de liberdade, mas nesse
contexto, sou sempre assaltado por uma certa cagufa. Tenho medo que me
descubram a careca, que percebam que sou uma fraude.”
Não me esqueci destas palavras. Tenho a
impressão de que era precisamente este o tipo de coisa que o meu amigo poeta só
partilhava comigo e que era esta faceta da nossa relação a causa da estima que
ele sempre demonstrou ter para comigo. Talvez por isso, tenha sido eu o único a
compreender o que se passou realmente num fatídico domingo de Verão, numa tarde
quente.
Era a apresentação do livro do meu amigo
poeta. A sala encheu-se de gente. Gente que, na sua maior parte, comprou mesmo
o livro. Gente paciente que ficou ali à espera durante horas. O meu amigo poeta
foi o único que não apareceu. Faltou ao lançamento do seu próprio livro.
Houve quem tivesse pensado que faltou por
distracção: “Está-se a cagar tão d´alto para isto que nem se lembrou.” Houve
quem pensasse que agiu por desfaçatez, por provocação pura e dura: “Aposto que
está em casa, refastelado a beber uma cerveja e a rir-se às gargalhadas, a
imaginar-nos aqui plantados com caras de parvo, à espera do génio”. Já eu,
limitei-me a recordar as palavras do meu amigo poeta e a interpretar o caso
através delas, enquanto olhava a cadeira que lhe havia sido destinada, vazia:
“Tenho medo que me descubram a careca”.
A verdade é que, depois disto, nenhuma outra
apresentação de um livro do meu amigo poeta passou de um fracasso em termos da
quantidade de gente presente. Já não ia quase ninguém aos seus lançamentos.
Bem vistas as coisas, talvez o meu amigo poeta
preferisse que as coisas se passassem assim.
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XIV
Dou-me agora conta de que ainda não descrevi
fisicamente o meu amigo poeta. A verdade é que, tal como sucede por vezes
quando deixamos de ver gente com quem passámos muito tempo, a memória que tenho
da sua aparência se cristalizou em duas ou três imagens muito vagas.
Possuo, contudo, uma fotografia que é capaz de
servir para o efeito.
O meu amigo poeta está no sofá, deitado de
lado, com um braço ao dependuro. Tem os olhos fechados, a boca aberta e os
cabelos negros em desalinho. À primeira vista, dir-se-ia que o que ali está é
um cadáver e não uma pessoa. Apesar do enquadramento demasiado oblíquo,
consegue discernir-se a sua compleição: é muito magro, muito pequeno. O braço é
quase esquelético. A barba está por fazer há três ou quatro dias. É espessa,
oculta-lhe as faces e a boca.
Tem a camisa aberta e engelhada, a camisola
interior cheia de nódoas. Sobre a barriga, uma lata de cerveja caiu,
vertendo-se o seu conteúdo sobre uma pilha de papéis preenchidos por uma letra
muito miúda, em linhas muito direitas. Está de calças de ganga velhas, o tecido
já claro, gasto, fino. Tem as pernas cruzadas sobre o sofá e, ao fundo, a
janela aberta deixa que a luz do final da tarde invada o espaço.
Ao lado do sofá, no chão, há uma pilha de
papéis com meio palmo de altura, muito direita. Como uma pequena torre de
papel, uma espécie de edifício dentro do edifício. À volta das folhas, três ou
quatros latas de cerveja, pousadas ao acaso.
No meio de todo este caos, o meu amigo poeta
dorme. Apesar de estar todo torcido, encharcado e de todo o lixo espalhado ao
seu redor, o seu rosto apresenta a expressão mais serena deste mundo.
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XV
Por vezes, o meu amigo poeta sentia-se preso.
O que nem é nada de particularmente interessante, bem vistas as coisas. Já a
maneira como enfrentava a situação, aquilo a que chamava o ‘ataque de condição
citadina’, ganhava, por vezes, contornos bastante originais.
Entre aqueles que privavam com o meu amigo
poeta, um desses ataques de condição citadina converteu-se numa espécie de
mito.
Deve ter sido um ataque mais intenso do que o
habitual. O meu amigo poeta tivera uma semana terrível. Desilusões laborais,
que significavam que a dada altura do mês teria de se contentar com uma dieta
exclusiva de ovos cozidos ao almoço e ao jantar, desilusões amorosas, que
significavam que, mais uma vez, teria de tratar das suas necessidades dando à
mãozinha, desilusões artísticas, neste caso trinta e dois poemas que acabaram
acidentalmente dentro da sua máquina de lavar e a desilusão física de andar
outra vez com problemas no fígado.
Contou ele que o ponto de não retorno ocorreu
no exacto momento em que a ponta do seu lápis se partiu a meio de um poema.
Disse que ficou a olhar para aquilo por momentos, sem reacção, completamente
paralisado. “Mas, mal percebi o que acabara de se passar, só conseguia pensar
em arrancar os cabelos, morder os meus próprios dentes ou dar cabeçadas na
parede. Olhei ao meu redor e o quarto parecia ainda mais desesperadamente
pequeno do que antes”, continuou ele. A seguir, contou que desatou aos berros.
“MERDA! MERDA! MERDA!”, gritava ele a plenos
pulmões, mesmo quando se pôs a caminhar como um louco pela casa, a todo o gás.
Pegou nas chaves, abriu a porta e saiu, batendo-a com estrondo contra a parede.
“MERDA! MERDA!”, continuava ele. A velha do terceiro andar veio às escadas e
tudo, para mandar vir com o meu amigo poeta, mas era como se ele nem sequer a
ouvisse. Lá parou de berrar, mas não disse mais nada enquanto desceu, em passo
de corrida, as escadas do prédio.
Começou a descer ruas. A sua raiva guiava-o
inexplicavelmente para o rio. E o meu amigo poeta seguiu-a, sem pensar em mais
nada, de modo que, das doze vezes que atravessou a estrada, nem sequer se deu
ao trabalho de ver se vinham carros na sua direcção. Limitou-se a caminhar. Uma
espécie de Moisés a dividir o tráfego ao meio, por entre buzinadelas, insultos,
chiares de pneus, uma figura para quem parar, nem que fosse por um segundo, não
era, simplesmente, uma opção.
Pode-se dizer que teve muita sorte, porque
conseguiu entrar na zona ribeirinha sem ter sido atropelado e sem que ninguém
lhe partisse os dentes. E lá continuou, guiado por uma espécie de voz interior
incendiada de raiva e autoridade, até que se viu perante o rio. Trepou o muro e
olhou para aquilo. Sentia-se desorientado. Tinha de fazer alguma coisa. Tinha
de fazer alguma coisa.
Acabou por baixar as calças, ali de pé,
perante os olhares mais escandalizados, virar-se de costas e, com uma expressão
furiosa, enquanto dizia, num tom de voz sofrido, “tu vais já ver, tu vais já
ver”, defecar ali mesmo. Quando ouviu o cagalhoto a mergulhar nas águas do rio,
virou-se para trás e pôs-se a andar para casa. Disse que era como se lhe
tivessem tirado um peso de cima.
“Quando um gajo está mal e não encontra uma
solução com um efeito permanente para o seu problema, chega lá por outro lado.
Muito simplesmente, alivia-se”, rematou ele ao explicar aquilo.
O meu amigo poeta pediu o café, que ainda não
tinha bebido, e o porto com que gostava de o acompanhar. Ninguém o contradisse,
nem lhe pediu mais explicações sobre o assunto. Talvez porque, àquela mesa, só
se encontravam exemplares dessa espécie que a sociedade gosta de catalogar como
doidos. Talvez por aquela ser uma mesa ao redor da qual estavam sentadas
pessoas mais tolerantes em relação ao capricho alheio do que um ser humano
comum.
Ainda assim, nenhum de nós esqueceu aquele
relato.
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XVI
Normalmente, o meu amigo poeta não se lembrava
dos sonhos. Por vezes, lembrava-se apenas de fragmentos durante os cinco
minutos que se seguiam ao acordar, mas mesmo isso era pouco frequente. Havia
casos ainda mais raros: aqueles sonhos que permaneceriam para sempre vivos na
sua consciência.
“O melhor sonho que alguma vez tive”, disse
uma vez o meu amigo poeta, “foi o das duas loiras platinadas.”
“O quê?”
“Foi no dia em que me fizeram um broche pela
primeira vez. Lembro-me desse sonho como se fosse ontem. Eram duas loiras
iguais à gaja d´A Laranja Mecânica.”
“Qual delas?”
“Aquela que o gajo não consegue comer porque
já está condicionado. Não sei se lembram.”
“Acho que dessa ninguém se esquece”, disse eu
a rir.
“Eu também não me esqueço”, continuou o meu
amigo poeta, “mas o meu sonho ainda foi melhor. Eram duas gajas com cabeleiras
postiças, platinadas, cabelos de um loiro quase branco, brilhante, franjinhas
bonitas a acompanhar a linha dos olhos.”
O meu amigo poeta fez uma pausa. Houve um
protesto:
“E então? Conta lá o resto do sonho!”
“Eram gémeas. Iguaizinhas. Eu estava deitado,
nu. Sentia-me leve, absolutamente descontraído, tomado pelo mais doce dos
torpores. Como se planasse, mas, ao mesmo tempo, estivesse rodeado de
almofadas. As duas gémeas estavam de joelhos à minha frente, só de cuecas.
Sempre que uma me chupava, a outra ficava a olhar para mim, com aqueles seios
breves e perfeitos, aquela pele imaculada, um olhar meigo e meio imbecil.
Depois trocavam. A que estava a sorrir punha-se a chupar e a que estava a
chupar punha-se a sorrir. Eram lindas. Perfeitas. Para mim, aquele momento continua
aquilo que mais se aproxima da definição do prazer. Um prazer puro, completo,
total.”
O meu amigo poeta sorria, distraído. Parou de
falar. As pessoas ao seu redor estavam tensas, embrenhadas no seu relato. O
silêncio durou pouco, porque toda a gente queria mais daquilo.
“Então e depois?”
“Conta lá! Já chega de suspense!”
O meu amigo poeta pôs-se sério subitamente,
com um ar rabugento. Como se tivessem acabado de acordá-lo.
“E depois? O que é que acham que aconteceu
depois, meus cretinos?”
“Sei lá! Conta mas é isso, porra!”
“Aconteceu a mesma merda que acontece sempre.
A mesma merda que acontece todo o santo dia”, respondeu o meu amigo poeta.
“Acordei.”
Toda a gente se riu, menos o meu amigo poeta.
Continuava a desejar nunca ter acordado daquele sonho.
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XVII
O que o meu amigo poeta queria mesmo era ter
sido pintor.
Não é que desgostasse de palavras. Bem pelo
contrário, adorava-as. Mas vivia fascinado pelas imagens. Era capaz de se
perder a observar coisas em que mais ninguém repararia – uma folha iluminada
pelo Sol, a textura rugosa de uma parede, uma pequena sombra projectada na
areia. Ficava a olhar durante horas, completamente imóvel, com uma curiosidade
infantil. Nesses momentos, a sua expressão pacificava-se, revestia-se de uma
serenidade que, na maioria do tempo, estava ausente dele.
Chegou a tentar tornar-se pintor. Experimentou
uma data de materiais, técnicas, tintas e abordagens. Dizia que, enquanto fazia
aquilo, estava mais próximo da felicidade do que em qualquer outro momento.
Contudo, as experiências não lhe saíram bem. Faltava-lhe o olho, a firmeza da
mão, a habilidade para deixar que alma se materializasse numa imagem.
Depois, percebeu que escrevia bem. Que era
através da palavra escrita que conseguia alcançar os outros, apesar de não o
fazerem tão feliz como as imagens. Deixou de pintar de um dia para o outro.
Mesmo os seus cadernos, antes cheios de pequenos esboços, passaram a conter
apenas palavras. Já nem um rabisco, nem uma mancha se depositavam no papel. O
meu amigo poeta autoproclamou-se um fracasso enquanto pintor, ou projecto de
pintor, e abdicou daquilo. Desistiu, simplesmente.
Mesmo anos depois, ainda falava sobre isso.
Terminava sempre com um olhar triste e um desanimado encolher de ombros.
“Cada macaco no seu galho”, concluía o meu
amigo poeta.
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XVIII
A certa altura, o meu amigo poeta andou,
durante uns tempos, mais calado e fugidio.
Passava mais tempo em casa e, nas poucas
ocasiões em que comparecia nas nossas reuniões de café, ficava mais calado do
que era normal.
Um dia explicou-se: tinha tido uma ideia para
uma peça de teatro.
“É sobre uma mulher que se apaixona
perdidamente por um homem. São ambos jovens e aquilo que a mulher ama naquele
homem são duas coisas. A mulher, claro, não tem consciência disso. Ama nele a
rebeldia, a irreverência, uma certa violência em termos de temperamento. Mas
aquilo que ama ainda mais é a ideia de ser capaz de o mudar, de o acalmar, de o
tornar mais dócil. Acabam por juntar-se, apesar de ele, inicialmente, resistir
um pouco. Com o passar do tempo, sem que se aperceba disso, ela começa a tentar
mudá-lo. Quer uma vida estável, segurança, um futuro. O processo, claro, é
violentíssimo. Ele resiste com todas as forças. É precisamente nesse choque que
reside o conflito central da coisa, que se alastrará aos pormenores mais
insignificantes do quotidiano do casal. Lavar a louça, decidir que quadro
colocar numa parede, todas as coisas, por mais minúsculas, serviram de pretexto
para que esse conflito venha à tona.”
“Parece interessante”, comentou alguém.
“Nem por isso”, respondeu o meu amigo poeta.
“A parte interessante é o desenlace e não a batalha. No fim da peça, ela
deixa-o. Precisamente porque o conseguiu mudar. Já não consegue sentir nada
senão desprezo por aquela espécie de marido amestrado. Troca-o por outro gajo.
Um gajo novo. Um rebelde.”
Durante semanas, o meu amigo poeta só falou
daquilo. Andava obcecado. Segundo o que nos contava, o a produção da coisa
progredia num ritmo avassalador. Até ele estava incrédulo com a velocidade com
que a sua caneta enchia páginas e páginas de diálogos.
Depois, progressivamente, começou a falar
menos da peça. Começámos a estranhar. Houve alguém que, finalmente, lhe
perguntou como andava a peça de teatro, apesar de não estar verdadeiramente
interessado naquilo. O meu amigo poeta franziu o nariz, olhou para o lado e
respondeu:
“Voltei aos poemas.”
“Pronto, era só isso que eu
queria contar”, concluiu, cabisbaixo, o meu amigo poeta.
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XIX
O
meu amigo poeta tem por hábito contar
histórias de casa de banho. Não quero com isto dizer que sejam histórias
semelhantes às inscrições gravadas nas portas dos mais requintados
W.C.´s. São
mais uma espécie de relato daquilo a que o meu amigo assiste quando se
torna
imperativo mudar a água das azeitonas entre duas cervejas. Curiosamente,
costuma também levá-las lá para dentro. É desconfiado e conhece bem a
corja de
beberrões que o acompanha nas suas saídas nocturnas. Sabe que o copo
estaria vazio se não tomasse precauções. Mas, enfim, aquilo que
caracteriza estes relatos é o grau de detalhe que o meu amigo poeta
consegue
inculcar-lhes.
Um exemplo funcionará talvez melhor para
ilustrar o caso. Recuemos ao dia em que o ouvi proferir a seguinte descrição,
numa mesa de sete onde eu mesmo me incluía também, a meio da refeição.
Lembro-me perfeitamente de que comíamos uma feijoada em que os chispes e
orelhas de porco abundavam.
“Estava meio bêbedo”, começou o meu amigo
poeta, “e fui à casinha, como qualquer pessoa faria. Mas, pelos vistos, escolhi
mal o urinol. Estava ocupado a tentar acertar no ralo daquela belíssima peça de
louça, como certamente imaginais, quando outro tipo entra, afligido da mesma
necessidade fisiológica que me levara ali. E gerou-se logo ali, como por vezes
acontece, um certo clima de tensão, não sei se estão a ver. Enfim, vicissitudes
da condição de macho. Eu dei um jeitinho para ele passar, mas naquele bar, por
causa de a porta estar apontada de lado para o urinol, não há forma de o
cliente seguinte ocupar o seu lugar sem que esse jeitinho seja maior do que num
W.C. comum. Por outras palavras, tive de lhe mostrar o mangalho, porque não
havia outra maneira. Fiquei ali, com a pila na mão bem à mostra, enquanto o
gajo me contornava para ocupar o seu posto. O gajo olhou para mim meio
escandalizado e eu olhei para ele como se quisesse pedir desculpa. E ele lá
começou a fazer o serviço, que já tinha adiado mais do que convém. No urinol ao
lado do meu, que naquela casa-de-banho só há dois. E quando o gajo põe a dele
de fora, não consegui evitar e olhei para a dele também. Opá, coisa que
acontece por instinto, não é? Depois veio o choque. Eu juro aqui a pés juntos
que o gajo tinha a gaitinha mais pequena e, ao mesmo tempo, mais feia que eu
alguma vez vi. Era terrível. Minúscula e toda enrugada, de tal forma que
parecia que só se via o escroto do gajo e o tudo de enormes cabelos que a
rodeava. Com licença.”
Nisto,
o meu amigo poeta parou para comer um
pouco da sua feijoada, que começava já a arrefecer. Já éramos só quatro à
mesa. Não deve ter reparado, pois continuou a sua narrativa com o
mesmo entusiasmo:
“Bem, o gajo percebeu que eu vi aquela coisa
que quase parecia o centro de uma flor no meio de tanto pêlo, e pôs-se logo
todo nervoso, vermelho que nem um tomate e a tremer todo. Parecia um depressivo
à beira da explosão. De tal forma que o fluxo do mijo parou. Só saíram mais
umas pinguinhas, apesar de o tipo ainda agora ter começado. O gajo sacudiu
aquilo. Nem percebo como é que ele fez a coisa, mas imagino que deva ter sujado
as mãos todas de mijo, porque não há maneira, não é? Um gajo tem de ter espaço
de manobra para não entrar em contacto com a urina, pá! E o tipo ali a abanar a cabecita, porque
aquilo era só cabecita, só pode ter ficado mesmo todo borrado nas mãos.
Borrado, que é como diz o outro, é só para facilitar, ele ficou foi mijado nas
mãos como se tivesse apontado aquela gaita feia para elas enquanto estava a
deitar as pinguinhas, ou o caneco!”
O meu amigo poeta parou para meter nova
garfada à boca. E concluiu:
“Quando cheguei a casa, tive de escrever sobre
aquilo. Era superior a mim. Não havia nada de pilas feias, nem W.C. porco, nem
cheiros de fezes e urina. Escrevi sobre a humilhação do homem pelo homem e não
sobre outra coisa qualquer, percebem?...”
Olhou finalmente ao seu redor. Quase só viu
cadeiras vazias. Eu era o único que continuava ali.
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XX
Certa vez, decidiram agraciar o meu amigo
poeta com uma distinção da treta. Um desses embustes de que os políticos se
servem para fingir que se incomodam com o estado das artes nacionais, quando,
na verdade, só se preocupam com os efeitos que o acto de entregar prémios ou
gabar a arte de alguém terá nas urnas. Queriam torná-lo comendador da ordem do
Infante, ou qualquer merda parecida, devido aos seus méritos literários,
inestimável contributo para as letras nacionais e mundiais e outras coisas do
género.
Ser-lhe-ia concedida a honra em questão pelo
Presidente da República em pessoa (que, provavelmente, nunca leu um livro que
não fosse necessário para fazer uma cadeira de liceu ou faculdade, se tanto),
em cerimónia pomposa. E o meu amigo poeta aceitou, mais por causa da cerimónia
do que pela graça em questão. Nunca foi rico e, por vezes, chegava a passar
fome. Assim, viu na imbecil festividade uma óptima oportunidade para encher o
bandulho com comida de rico. Havia também uma certa vaidade entre os motivos
para marcar presença, mas essa, o meu amigo poeta nunca havia de admitir. O
que, aqui entre nós, só é prova ainda mais esclarecedora da dimensão do seu ego.
Quis assim o destino que, num solarengo
domingo de Verão, se deslocasse o meu amigo poeta à capital para que se
consumasse o acto. Vestiu o seu fato menos estragado, meteu-se no autocarro e
lá chegou ao palacete onde a coisa se desenrolaria. Contou-me que comeu por três
ou quatro. Provou as bebidas todas. “Vinhos bastante bons, licores assim
assim”, disse ele em jeito de apreciação quando me fez o relato. Posou para as
fotografias. Falou com as pessoas e tudo. Civilizadamente, ou seja, mentindo
muito e sorrindo mais do que de facto desejaria, sempre sem chegar a elevar o
tom de voz.
E lá chegou o momento da condecoração. O meu
amigo poeta esperou pacientemente, como se estivesse na bicha do supermercado,
que os restantes agraciáveis fossem agraciados. Estava um calor dos diabos e,
ainda para mais, com os copos que bebera, o meu amigo poeta fartou-se de suar.
Ainda assim, resistiu como um herói e não despiu o blazer, até que chegou o
momento em que o Presidente lhe colocaria a medalha ao peito e apertaria de
seguida a sua mão, trocando com ele algumas palavras de circunstância. Contudo,
Sua Excelência não tinha noção de uma coisa: é que o meu amigo nunca foi muito
de circunstâncias. Sabia manter a compostura, mas só se lhe interessasse
mantê-la. De modo que, quando o Presidente lhe disse: “é um prazer imenso
conceder esta honra a um dos melhores poetas da actualidade”, o meu amigo não
foi em modas. Falou-lhe no tom mais afável deste mundo, com um largo sorriso,
mantendo todo o decoro exigido pela circunstância.
“Queria-lhe dizer uma coisa”, disse o meu
amigo poeta enquanto lhe apertava a mão.
“Ai sim? Diga lá!”
“Um poeta como eu reconhece o cheiro de uma
mentira a quilómetros de distância. Ao seu redor, o fedor é tão forte que era
capaz de fazer a pior das lixeiras municipais assemelhar-se a uma plantação de
rosas.”
Cumprida que estava a cerimónia, o meu amigo
poeta fez a viagem de regresso. Ligaram-lhe da editora no dia seguinte.
“Procure uma editora nova. Os seus livros vão
sair de circulação. Ordens superiores, temos muita pena”, disse uma voz dentro
do telefone. E assim foi. De modo que hoje, quando o meu amigo poeta tem sorte,
fazem-se edições de cento e cinquenta exemplares das suas obras.
Mas a injustiça não foi assim tão grande.
Ainda hoje, na mesinha de cabeceira do meu amigo poeta, se pode ver uma
fotografia em que o Presidente, com um sorrisinho muito amarelo, lhe aperta a
mão.
“Sempre que acordo indisposto, olho para
aquela fotografia e o dia deixa de me parecer uma tortura”, diz frequentemente
o meu amigo poeta, de olhos brilhantes como os de uma criança, “mas ando com
ideias de mudá-la para a casa de banho, para a pendurar mesmo de frente para a
sanita. Assim, quando me sentar, já não há hipótese de me esquecer do que vim
fazer ali.”
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XXI
O meu amigo poeta não se safava muito bem com
as mulheres. Dizia que não tinha o dom de perceber os convites do sexo oposto.
“Essa coisa de trocar olhares e mostrar o
ombro e mexer nos cabelos não é mesmo para mim. Só me deixam mais confuso”,
disse ele certa noite a uma mulher. “Lembro-me de uma ocasião em que uma gaja
me perguntou, depois de uma longa conversa, se eu não quereria por acaso passar
por casa dela. E eu respondi que não, que tinha outras coisas para fazer. Não
queria ver a casa dela nem pelo caralho! Só depois é que me explicaram o que
ela queria.”
A mulher tinha longos cabelos negros, olhar
feroz, pernas longas. Uma silhueta que parecia ter sido desenhada por
encomenda. Lábios carnudos. Voz suave. E era expressiva, com uma pose de
desafio que não se destinava a afastar. Mais importante ainda, estava decidida
a levar o meu amigo poeta para a cama, até o ter ouvido pronunciar-se sobre
aquele assunto.
O meu amigo relatou-me o final do episódio,
num momento em que nos encontrávamos a sós, a salvo da atenção e comentários
alheios. Contou-me que, mal acabou de ouvir aquilo, a mulher se levantou e
encolheu os ombros. Disse-lhe que tinha muita pena, mas não tinha tempo para
aquelas merdas.
“Fiquei desolado outra vez. De rastos. Pensava
mesmo que ela queria dar uma pinadela, man”, concluiu o meu amigo poeta. “Pelos
vistos, estava enganado”, concluiu ele, pensativo.
Ficámos em silêncio durante um momento. O meu
amigo poeta continuava, certamente, a tentar entender o que se tinha passado,
como era possível que as coisas acabassem por ter quase sempre um desfecho
assim. Eu, por outro lado, tentava encontrar uma maneira de o iluminar um pouco
acerca da matéria de que nos ocupávamos.
Olhei para ele. Aquilo dava dó: uma das
criaturas mais inteligentes que já conheci, tão transtornada por um problema tão
prosaico.
“Deixa lá”, disse eu. “Pode acontecer a
qualquer um.”
O meu amigo poeta era um caso perdido.
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XXII
O meu amigo poeta distraía-se com facilidade.
Não estranhei por isso que certa tarde, ao vê-lo irromper pelo café com os
cabelos completamente desgrenhados, de olhos raiados de vermelho, sentando-se e
clamando por um bitoque perante a estupefacção da restante clientela, o surto
se devesse ao facto de ter perdido outra vez as chaves de casa. Era coisa que
lhe acontecia com frequência. Por vezes, reapareciam semanas depois, outra vez
demoravam mais alguns meses a ser encontradas. O recorde era de dois anos e
quatro meses. E pronto. Acontecera novamente. Dessa vez, contudo, o meu amigo
poeta também não tinha pago a conta do telefone. Vira-se assim obrigado a
passar duas semanas a comer atum e salsichas enlatados, até ao momento em que a
senhoria lhe veio exigir, como era hábito, que lhe pagasse a renda que tinha em
atraso.
“Estava a ver que a velha nunca mais chegava”,
comentou ele, “já só lá tenho uma latita de feijão…”
Numa outra tarde, pouco tempo depois, viu-se o
meu amigo poeta envolvido na conversa mais aborrecida do mundo. Estava rodeado
de um conjunto dos seus admiradores (na sua maioria, aspirantes a poetas,
amantes das artes com prateleiras repletas de colecções de Eça de Queirós,
Fernando Pessoa e Alexandre Herculano, e outros exemplares dessa estranha
espécie que vê a poesia como coisa
finíssima) e parecia não haver forma de os tipos pararem debitar
frivolidade atrás de frivolidade. Tentou distrair-se, mas, dessa vez, não conseguiu.
Aproveitando com agilidade uma das raras pausas da tertúlia, contou-lhes a
história das duas semanas em que fora prisioneiro no seu próprio domicílio. Os
seus admiradores, claro, adoraram o relato. Coisa que o deve ter irritado ainda
mais, porque, ao contar-me o episódio, o meu amigo poeta confidenciou-me que
pensou para consigo que tinha de fazer uma reciclagem urgente ao seu séquito.
Depois concluiu:
“Às vezes, tenho saudades desses tempos”,
disse ele, sorrindo placidamente, enquanto passava os olhos pela plateia. Não
se despediu. Pôs-se de pé e foi-se embora com a maior das despreocupações.
Claro que os admiradores do meu amigo poeta
não perceberam que se estava a referir ao prazer que a sua companhia lhe
inspirava. Continuavam a adorá-lo tanto como antes.
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XXIII
Foi num dos Invernos mais chuvosos que vivi.
Uma coisa terrível. Chuva ininterrupta durante dias, semanas, meses. Nesse ano,
o estado normal de qualquer pessoa implicava quase sempre o facto de ter a
roupa completamente encharcada. Não havia mesmo maneira de fugir. Era
impossível ficar à espera e o vento forte que se fazia sentir quase
constantemente tornava o uso do guarda-chuva uma mera formalidade. Toda a gente
andava mal disposta. As pessoas andavam mais caladas do que era habitual. Quase
ninguém abria a boca se não fosse para protestar contra a merda do tempo.
Atravessei a rua, todo encolhido debaixo do
guarda-chuva. Tentei abrigar-me sem grande sucesso. As calças e os sapatos já
estavam todos ensopados. Eram seis da tarde, mas já não havia luz nenhuma. A
densa cortina formada pela constante queda de água parecia obstruir tudo,
cercando-me com o seu ruído contínuo.
Toquei à campainha e esperei alguns segundos.
A porta abriu-se, entrei e subi até ao último andar. Bati à porta. O meu amigo
poeta veio abri-la poucos segundos depois.
“Entra, entra depressa”, disse ele, com os
olhos arregalados e um enorme sorriso, “tens mesmo de ver isto, aposto que
nunca viste nada igual.”
Assim que entrei, deparei-me com uma visão
surreal.
Espalhados por toda a sala do meu amigo poeta,
estavam tachos, panelas e baldes. A mobília estava toda tapada com coberturas
de plástico. Um pouco por todo o tecto, pequenas gotas de água aumentavam
progressivamente de tamanho antes de cair. O som da sua queda nos recipientes
era quase tão regular como o dos movimentos de um ponteiro de relógio, mas os
ruídos que provocavam eram bastante diversos entre si, devido às diferentes
superfícies em que embatiam. Formavam uma estranha sinfonia. Uma espécie de
xilofone infernal, um assalto contínuo aos sentidos, capaz de conduzir qualquer
pessoa à loucura.
No meio da sala, por entre os tachos, as
panelas e os baldes, o meio amigo poeta tinha improvisado um pequeno posto de
trabalho. A secretária e a sua cadeira estavam sobre o tapete, bem no centro da
divisão, naquele minúsculo pedaço de espaço em que não chovia. No tampo da
secretária, muito direitinha, estava um pequeno monte de papéis empilhados.
Espantosamente, o meu amigo amigo poeta olhava
para aquilo tudo como uma criança. Tinha um sorriso inocente no rosto. Parecia
verdadeiramente deliciado, quase divertido, com a pequena catástrofe que se
desenrolava à sua frente. Não sei bem se queria mesmo perceber o que se passava
dentro da cabeça dele, mas fiz a pergunta:
“É impressão minha, ou estás todo contente com
esta merda?”
“Não gostas?”
“Estás doido? Isto é um desastre, caralho!
Quando é que arranjas isto?”
O meu amigo poeta encolheu os ombros.
“Ainda não sei. Acho que vou esperar que o mau
tempo passe.”
“Estiveste a beber?”
O meu amigo poeta riu-se. Pouco ligou ao que
lhe disse. Estava mesmo interessado era no espectáculo que tinha à sua frente.
“É maravilhoso, isto”, disse ele, quase
comovido, “nunca na vida experimentei uma coisa assim. Isto é lindo. Mesmo
lindo.”
Desisti de tentar convencê-lo a arranjar o
telhado. Não valia a pena.
“Isto é lindo”, repetiu o meu amigo poeta.
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XXIV
É-me difícil descrever o rosto do meu amigo
poeta.
Sim,
algo tão central num ser humano como o seu próprio rosto. Há, primeiro,
o esquecimento. Depois, o facto de a cara dele ser uma cara
atipicamente
normal. A cor da pele, o formato do rosto, o banalíssimo castanho dos
olhos, as
proporções da boca e do nariz, o tamanho das sobrancelhas, a densidade
da
barba, a angulosidade, a largura. Todos esses elementos do rosto eram
muito
normais. E o conjunto era, em si mesmo, tão normal quanto as partes que o
compunham.
Contudo, e apesar de o seu corpo não ser
também dotado de alguma qualidade particularmente distinta, o meu amigo poeta
era das pessoas que mais facilmente seriam identificadas à distância. Eram a
pose, os gestos, o ritmo e a velocidade dos movimentos, ora muito bruscos, ora
muito lentos, que permitiam reconhecê-lo, mesmo no meio da multidão. Falo de
coisas tão elementares como a direcção do olhar enquanto se mexe um café, a
posição dos ombros e da cabeça durante um passeio, a forma como um sorriso se
instala no rosto, o modo como um gesto de mão acompanha a intensidade de uma
frase falada. Havia uma espécie de ausência, de alheamento, a temperar o
comportamento corporal do meu amigo poeta. Algo que lhe afectava de igual forma
a expressão facial, como que indicando que, apesar de o corpo dele estar ali, o
seu pensamento estava noutro lado qualquer.
No entanto, mesmo que não ficasse tão afectado
como os que o rodeavam pelo que estivesse a acontecer, ou a ser discutido, o
meu amigo poeta não era gajo para perder o fio à meada de uma conversa, ou para
deixar de argumentar durante uma discussão. Era mesmo capaz de se empolgar como
qualquer outra pessoa e, apesar de ser reservado, não era frio. Mas percebia-se
sempre, o corpo dele indiciava-o. O meu amigo poeta estava ali, no local onde o
seu corpo se encontrava, mas sempre sem estar completamente lá.
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XXV
Quando
lhe contar que o meu amigo poeta era
viciado em estímulos, o estimado leitor perguntar-me-á, porventura, se
não o é
toda a gente. Essa objecção hipotética, contudo, dever-se-ia a um único
motivo: o caríssimo leitor nunca esteve frente a frente com o meu amigo
poeta, coisa que o impede de conhecer a dimensão quase sobre-humana do
seu vício.
Punha as mãos em todo e qualquer estímulo novo
que se lhe apresentasse. Não era coisa que se relacionasse directamente com a
sua vida, com as suas necessidades quotidianas. O meu amigo poeta não precisava
de estímulos senão para escrever. Mas, depois de tanto tempo, de tantos anos a
escrever num ritmo tão alucinante e furioso, precisava de escrever como quem
precisa de oxigénio: não conseguia viver sem aquilo, precisava de escrever para
viver. Para aguentar a vida. Em certa medida, aquilo era o sentido da vida do
meu amigo poeta, talvez em virtude do modo como via a própria vida: um processo
simultaneamente terrível e risível. Encarava, portanto, a sua existência como
algo que se deve sofrer e de que se deve rir.
“É uma espécie de filosofia dos duros adaptada
a gajos com pouco músculo e pouco desejo de matar”, disse-me ele mais do que
uma vez. Uma vez acrescentou ainda: “é uma questão estilística. Um gajo que se
ri da própria dor tem pinta. Tem estilo. De uma forma meio bera, mas tem
estilo. E isso, num poema, por exemplo, é melhor do que uma lamechice qualquer.
Na vida, ainda mais. Ninguém tem paciência para choraminguices. E a vida deve
ser escrita assim. Sem choraminguices e com estilo.”
Escrevia, portanto, a vida tal como a via: um
processo simultaneamente terrível e risível. E não via qualquer
incompatibilidade nisso. Sofrer e rir eram, para ele, duas faces da mesma
moeda, dois momentos do mesmo processo. Aos momentos felizes, ou pacíficos, em
que não se ri nem se chora, mas se contempla, via-os ele como intervalos do
processo, uma espécie de pausa para café que um gajo tira da própria vida. “Vou
sair da vida para ir ao café, ou para ir olhar para a relva, ou para ir à praia
ver as gajas em biquini”, dizia ele.
O resto era escrever para viver e viver para
escrever. De tal forma que o meu amigo poeta tinha um verdadeiro terror perante
a possibilidade de não conseguir escrever, de interromper a corrente durante
demasiado tempo. Era, para ele, um medo maior que o medo da morte. Era o medo
de se transformar numa espécie de vegetal: um gajo que não sofre e não se ri.
Uma espécie de Buda plantado debaixo de uma árvore, a engordar e a ganhar bolor
enquanto dá conselhos aos outros e lhes explica o que é a vida e como se deve
vivê-la. Talvez fosse esse o impulso que levava o meu amigo poeta a escrever. A
páginas tantas, chega ele mesmo a escrever que “…quero ser um/ /anti-buda…”,
mais ou menos a meio do seu primeiro livro. Agora que penso nisso, talvez seja
mesmo no centro matemático do livro e a coisa não tenha sucedido por acaso.
Portanto, podemos concluir que o meu amigo
poeta tinha medo de perder a intensidade da vida: deixar de sofrer, deixar de
rir, deixar de escrever. De perder uma hipótese qualquer de experimentar
qualquer coisa. De não ter mais que contar. De não ter como contar algo a
alguém por lhe faltar o ter experimentado algo de semelhante.
Creio que era por isso que se metia nas
experiências mais variadas, bizarras e coerentes entre si. Tudo era fruto do
desejo de oscilar entre dois pólos, furiosamente: rir e sofrer; sofrer e rir. E
tinha tenacidade, o meu amigo poeta. Era decidido, não se ficava pelas
intenções. Tanto o queria, que acabava por se ver metido, pelo menos uma vez
por semana, num episódio memorável por um outro motivo. Graças a esta
particularidade, creio que a sua vida seria impossível de narrar senão por
intermédio de fascículos, de episódios.
Vendo as coisas por outro lado, porém, ainda
que talvez de um modo mais cínico, talvez o meu amigo poeta se metesse em cenas
grotescas com tal frequência apenas devido ao facto de ele mesmo ser tão
grotesco como as embrulhadas em que se metia.
Enfim, mais uma das teorias que tenho sobre ele.
Como muitas outras, uma teoria por confirmar.
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XXVI
Uma bela tarde, estava eu a fazer companhia ao
meu amigo poeta no café, quando ele me perguntou:
“Amanhã queres ir jantar comigo e com a minha
filha?”
Franzi o sobrolho.
“Tu tens uma filha?”
“Julgavas-me impotente?”
Fiquei estupefacto com aquilo. Positivamente
atónito. Catatónico. Conhecia o gajo há mais de duas décadas e ele nunca antes
mencionara sequer que tinha descendência. De modo que, quando recuperei a
faculdade da fala, só consegui insistir:
“Tu tens uma filha?”
“Tenho”, respondeu ele, encolhendo os ombros,
a olhar na minha direcção com uma expressão de indiferença. Agia como se não se
tivesse passado nada. “Queres vir ou não?” perguntou ele a seguir.
Não consegui responder-lhe. Levantei-me e
comecei a caminhar em direcção à saída. Ainda o ouvi aos berros, a perguntar o
que é que tinha sido, se eu me estava a passar, se então eu me punha a andar
dali assim, mas nem me voltei para trás. Estava fodido, voltei para casa.
À noite, o telefone tocou. Era o meu amigo
poeta.
“Então? Conto contigo amanhã?”
Fiquei calado durante uns segundos. Acabei por
aceitar o convite. O que era de estranhar era o facto de eu me ter surpreendido
com a novidade. O meu amigo poeta não era muito de partilhar pormenores da sua
vida sentimental.
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XXVII
O meu amigo poeta estava atrasado. Como já
estava mais do que habituado aos seus atrasos, pedi um fino mal me sentei no
restaurante. Bebi-o, enquanto observava o sítio. Estranho. O meu amigo poeta,
com quem me habituei a partilhar refeições nos tascos mais reles, a convidar-me
para um estabelecimento de aspecto caro. Mesa reservada, empregados de
laçarote, muito direitos, em uniformes imaculados, com coletes em vermelho
vivo, castiçais de aspecto dispendioso, mobília antiga em madeira escura,
candeeiros elaborados. Iluminação impecável, muito agradável, gente de posses a
comer a sua refeição. E eu ali no meio. O único a beber um fino.
Quando o fino acabou, acabei por pedir um
porto seco. Não porque me apetecesse, mas porque pensei que aquela gente podia
estranhar um gajo como eu ali sentado a beber finos em silêncio, sozinho numa
mesa.
Estava eu a meio do meu porto seco quando uma
rapariga entre os vinte e cinco e os trinta parou à frente da mesa a olhar para
mim. Corpo elegante, a tender para o magro, dentro de um vestido castanho de
tecido fino. Rosto bem desenhado, olhos rasgados por detrás dos óculos, pele
morena. Trazia o cabelo apanhado numa espécie de novelo atrás da nuca, que
deixava ver um pescoço longo, ombros arredondados. Sorriu um sorriso seco,
inclinou-se e perguntou-me se era eu o amigo do pai dela. Respondi que sim, ela
pediu-me desculpa pelo atraso e sentou-se imediatamente.
Só quando ela pediu um café e um porto ao
empregado, os dois em conjunto e ainda antes de ter jantado, é que acreditei
mesmo que estava perante a filha do meu amigo poeta. Pelos vistos, o hábito de
abusar da ingestão de cafeína corria-lhes no sangue. E o hábito de a acompanhar
com vinho do porto também. Reparei ainda nalgumas semelhanças entre pai e
filha. Os gestos dela, ao limpar os óculos, eram exactamente iguais aos do meu
amigo poeta. E os olhos. E algumas expressões faciais. Sim, as semelhanças
estavam lá.
Seguiram-se alguns momentos algo
desconfortáveis, se não mesmo humilhantes para a minha pessoa. Tentei meter
conversa várias vezes, mas a rapariga respondia-me sempre ou com monossílabos,
ou com onomatopeias, ou, pior ainda, com um sarcasmo dos mais ácidos de que já
fui alvo.
Quanto ao meu amigo poeta,
esse ainda havia de demorar.
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XXVIII
Passava já mais de uma hora da hora combinada
quando o meu amigo poeta fez, finalmente, a sua aparição no restaurante.
Estava mais nervoso do que era habitual. Não
conseguia manter o contacto ocular, o andar parecia vacilar um pouco e a
respiração estava um pouco mais acelerada. Aproximou-se com uma expressão
genuinamente aflita, cumprimentou-me primeiro e, depois, cumprimentou a filha
com dois beijos, muito corado, enquanto se desfazia em desculpas.
“Estou desolado, a sério. Desolado”, dizia num
ritmo aceleradíssimo o meu amigo poeta, gesticulando vigorosamente, “hoje foi
mesmo um daqueles dias em que uma pessoa não consegue fazer nada à primeira,
andei o tempo todo desorientado, peço desculpa… Primeiro não encontrava o raio
das calças, depois distraí-me a escolher o casaco, enganei-me duas vezes no
caminho… Enfim, uma tortura. Estou desolado.”
“Pois”, respondeu a filha num tom seco, “o que
é mais curioso é que no ano passado se passou exactamente a mesma coisa.”
“Tens razão. Coisas que acontecem, enfim… Não
sei que mais te diga…”
Eu sentia-me mesmo desconfortável metido
naquela cena. A filha do meu amigo poeta estava fula, o meu amigo poeta
continuava a pedir desculpas, ela ficava ainda mais fula, ele pedia mais
desculpas… Enfim, espero que consigam perceber a coisa. De modo que decidi
atalhar e sugeri que escolhêssemos a comida.
“Pode ser”, respondeu a filha do meu amigo
poeta.
O meu amigo poeta suspirou de alívio e lá
mandámos vir, finalmente, a comida.
O resto do jantar decorreu mais ou menos no
mesmo registo. Um espectáculo deplorável. O meu amigo poeta sempre aflito com
as bocas da filha, a filha do amigo poeta sempre com pouquíssima paciência para
o que quer que o pai dissesse, e eu ali no meio, sem perceber muito bem que comportamento
adoptar perante o estranho convívio em que me via envolvido. Tornou-se muito
rapidamente nítido o motivo que levara o meu amigo poeta a convidar-me para
participar naquele santo repasto: usava-me para elogiar a filha sempre que se
lembrava de alguma coisa que pudesse servir de elogio. Um exemplo:
“Sabes que a Joana tem um talento
inacreditável para a fotografia? Tens de ver um dia as fotografias que ela
tira. São espectaculares...”
O problema maior tinha que ver com o facto de
o meu amigo poeta não ser propriamente um perito no que toca a dar graxa a
alguém. Pelo contrário, posso afirmar que era daquelas coisas em que ele se
espalhava ao comprido, tal era a sua inaptidão para o exercício.
Fiquei a saber que a filha dele era
jornalista, casada, que tinha uma filha que o meu amigo poeta quase nunca vira.
Morava numa pequena cidade a oitenta e poucos quilómetros de distância. Viajava
muitas vezes, mas quase sempre em trabalho, e via muito poucas vezes o pai.
Estranho era o facto de não conhecer a mãe dela. Fazendo as contas, não era
difícil verificar que já era amigo do poeta na altura em que ela fora
concebida.
A rapariga despachou o jantar o mais que pôde.
Comeu depressa e ainda eu ia a meio do meu digestivo quando ela propôs que
fôssemos andando. O caminho de regresso era longo e tinha um dia muito ocupado
no dia seguinte. O meu amigo poeta ainda tentou fazê-la ficar mais um pouco,
mas sem sucesso. Estava mais que visto: para ela, aquilo era uma visita de
cortesia, uma obrigação a cumprir e nada mais do que isso.
Assim, acabámos por pedir a conta cerca de uma
hora e meia depois de o meu amigo poeta ter chegado. Este encarregou-se da
despesa e encaminhámo-nos para o parque de estacionamento, onde me despedi
dela. Ficou combinado que eu esperaria o meu amigo poeta no meu carro, para
depois o deixar em casa. Foi o que fiz.
Entrei no carro e esperei por ele.
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XXIX
Enquanto esperava pelo meu amigo poeta,
entretive-me a observar, através do vidro embaciado, as pessoas que passavam
pelo parque de estacionamento. O frio instalava-se aos poucos no meu corpo e
lembro-me de perguntar a mim mesmo, mais do que uma vez, como poderiam elas ser
tão felizes. Havia qualquer coisa nelas, porventura dissimulada, nos seus
sorrisos largos, nas suas vozes animadas, que despertava a minha inveja. Não
sou muito de exageros. Não direi, portanto, que eram felizes. De uma forma
estranha, contudo, pareciam mais leves do que nós. Como se estivessem em paz
com o que as rodeava, como se houvessem assinado um contrato, uma espécie de
trégua com a vida na qual nunca me convidaram a participar.
Depois, finalmente, o meu amigo poeta.
Aproximava-se lentamente, rosto baixo, de mãos nos bolsos do casaco. Volta e
meia, a luz dos candeeiros atingia-lhe o rosto, mas era como se não o
iluminasse verdadeiramente. Parecia-me antes que a única coisa que essa luz
fazia era inscrever-lhe sombras no rosto, de um modo que me levava a pensar que
aquilo não era um rosto humano, mas o palco de um combate.
O meu amigo poeta abriu finalmente a porta,
sentou-se, despiu o casaco e pôs o cinto de segurança sem que entre nós tivesse
sido trocada uma única palavra. Arranquei. Percorremos as ruas da cidade em
silêncio, numa marcha lenta. Havia um clima tenso dentro do carro. Éramos os
únicos ali dentro, mas havia algo mais. Lembro-me de ter pensado que às vezes
não é só o som que pode fazer vibrar o ar, que o ar pode animar, que o pode
transformar. Aquilo que fica por dizer carrega também um peso, uma densidade impossível
de ignorar, muitas vezes acompanhada de uma sensação de fragilidade ou
efemeridade. E foi então que ele suspirou e eu olhei para o rosto dele,
novamente. A expressão era dura, indiciava talvez algum esforço, uma fútil
tentativa de ocultar a sua alma.
Ele suspirou. Um suspiro de alguém que se
lamenta, não um suspiro de alívio, mas um de resignação.
“Estás bem?”, perguntei eu.
Ele demorou um pouco a responder.
“Claro que estou bem.”
Esperei mais um pouco. Não sabia bem o que
dizer, mas havia perguntas que não podia deixar de fazer. Precisava de saber.
“Porque é que nunca falaste dela?”
“Não sei”, respondeu o meu amigo poeta, “não é
coisa de que me orgulhe muito.”
Houve uma pausa. O meu amigo poeta tirou os
óculos do rosto e pôs-se a limpá-los no colo, enquanto eu conduzia. Ao olhá-lo
de relance, pude ver-lhe os olhos muito brilhantes. Estava a trincar a sua
própria bochecha. Tremia. Contudo, o corpo mantinha-se firme.
“Quer dizer, não era bem isto que eu queria
dizer”, continuou ele, num tom de voz arrastado, “não é dela que eu não me
orgulho, é de mim.”
“Não sei se percebo o que queres dizer.”
“O que é que achas que eu estou a querer
dizer? Não é difícil adivinhar. Às vezes um gajo faz merda e às vezes não
consegue reparar os estragos feitos por mais que tente.”
A voz dele tremia ainda mais. Fazia um esforço
nítido para dizer aquilo, mas, mesmo assim, não conseguia dizer nada de muito
significativo acerca do assunto. Enrolava e enrolava e parecia difícil
desenvolver aquilo.
“Lembras-te da Rita?”
“Claro que sim. Ela é filha dela?”
“Não. É filha da gaja com quem pus os cornos à
Rita.”
“Estás a falar a sério? Como é que nunca me
falaste de nada disso? Como é que ninguém soube?”
O meu amigo poeta encolheu os ombros.
“O motivo é precisamente o mesmo. É uma coisa
de que não me orgulho muito.”
“Mas continuas a vê-la?”
“À Rita?”, perguntou o meu amigo poeta, quase
escandalizado, “claro que não! Cruzes, credo, louvado seja o senhor! Para que é
que eu ia andar agora a ver a Rita?”
“Estou a falar da tua filha, pá!”
“Ah, a minha filha”, respondeu ele, pensativo.
Tirou instintivamente os óculos do e pôs-se a limpá-los novamente. “Raramente.
Muito raramente.”
“Porquê?”
O meu amigo poeta encolheu outra vez os
ombros. Pareceu que ia começar a falar, mas as palavras não lhe saíam. Percebia-se
facilmente que não sabia bem por onde começar.
“É difícil de explicar”, começou ele.
“Nota-se”, respondi eu.
“Tem calma. Eu explico.”
Houve uma pausa.
“Quando eu soube que a Teresa… que é a mãe,
como deves calcular… quando eu soube que ela estava grávida, ainda estava com a
Rita. E fiquei em pânico, claro. Foi a maior embrulhada em que me meti na vida
toda e, como bem sabes, não foram poucas. Havia decisões a tomar. E eu tomei a
pior decisão. Escolhi a Rita.”
“O que é que estás a dizer? Não te percebo.”
“Tu sabes como é que eu sou. Estás-me a ver a
educar alguém? A mim? Na altura, ou ia com a Teresa para a terrinha para tomar
conta da miúda, ou continuava a minha vida.”
Estávamos já próximos da casa do meu amigo
poeta. Entrei no bairro, desacelerando ainda mais. Não se via ninguém na rua
naquela noite fria.
“Opá, decidimos que eu ajudava com o dinheiro,
ia visitar uma ou duas vezes por ano, e assim ninguém atrapalhava ninguém. Ia
eu para o meu lado, a Teresa para o dela, e a miúda ia com ela. E pronto. Foi
isso.”
Virei à esquerda. Passei pelo café do bairro
muito devagar. Lá dentro, os velhotes continuavam agarrados aos seus copos,
virados para a televisão. As vozes soavam bem alto de lá de dentro. Virei à
direita e parei em frente ao prédio do meu amigo poeta.
Ele tirou o cinto, vestiu o casaco, mas não se
levantou logo. Ficámos mais um pouco dentro do carro. E eu não consegui
manter-me calado.
“Desculpa lá, mas… Foi o melhor que
conseguiste fazer? Deixar as coisas assim, como se não se tivesse passado nada?“
Foi quando o meu amigo poeta olhou para mim,
com uma expressão embaraçada e encolheu os ombros que perdi finalmente as
estribeiras. Não me lembro de outro momento em que me tenha sentido tão
desiludido pelo meu amigo. A única coisa que consegui fazer naquele momento foi
gritar com ele.
“Ela é a tua filha, caralho!”
Ele voltou-se para a frente. Olhos fixos,
apontados para coisa nenhuma, pose resignada, expressão vazia.
“Eu disse-te. Não é nada de que me orgulhe”,
disse o meu amigo poeta antes de sair.
Fiquei a vê-lo. Abriu a porta do prédio e
desapareceu do interior do edifício. No caminho para casa, acabei por fazer um
pequeno desvio pela parte mais animada da cidade. Guiei durante algum tempo,
sem destino, muito lentamente, para digerir tudo aquilo. As pessoas passeavam
com copos na mão e sorrisos nos lábios. Continuavam a parecer-me estranhas.
Pareciam-me leves, assustadoramente leves.
Quando me fartei do espectáculo, voltei para
casa. Nessa noite, foi mais difícil adormecer do que numa noite normal.
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XXX
Talvez a melhor forma de contar a história de
Rita e o meu amigo poeta seja fazê-lo começando pelo fim.
Não só para que se
perceba que ele até tinha um coração, mas também porque me parece impossível
contá-la de outra forma. As minhas habilidades narrativas, como deve ter-se já
tornado evidente, também têm as suas limitações. Além disso, é difícil
desenvolver um assunto sobre o qual se tem pouco conhecimento, como era o caso
daquele amor. Foi algo que sempre me ultrapassou: como foi possível que uma
relação tão estreita e intensa se gerasse entre aquelas duas criaturas?
Provavelmente, não seria sobre estas questões
que o meu pensamento se debruçava, no momento em que o Mendonça entrou pelo
café adentro. Devia ter percebido imediatamente que se passava qualquer coisa
de anormal, porque ele não trazia consigo o caderno de esboços que transportava
sempre e para todo o lado.
“É pior do que eu temia”, disse ele assim que
se sentou à minha frente, “o nosso amigo poeta está um caco.”
Olhei-o em silêncio, pesando a importância das
suas palavras, enquanto esperava que ele desse continuidade à sua exposição.
“Almocei em casa dele”, prosseguiu o Mendonça,
“e até estava tudo a correr muito bem. Só percebi que o gajo não estava nos
seus dias quando se pôs a lavar a louça mal acabámos de comer.”
“Estás a falar a sério?”, perguntei.
O meu amigo poeta nunca lavava a louça depois
da refeição. Normalmente, era preciso que passassem meses antes que se
dispusesse a dar conta da tarefa. Consequentemente, era muito mais habitual
lavar a louça antes de cozinhar do que depois de comer.
“E o pior nem é isto”, disse o Mendonça. Fez
uma pequena pausa antes de completar:
“Acreditas que o gajo começou a chorar? Assim
sem mais nem menos?”
De facto, era difícil acreditar que aquilo se
tivesse mesmo passado. Ninguém seria capaz de prever que o meu amigo poeta se
iria abaixo daquela maneira.
“Diz que ela lhe faz falta”, completou o
Mendonça.
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XXXI
Segundo me contou, anos depois, o meu amigo
poeta, conheceram-se numa tabacaria. Disse-me ainda que o dia era cinzento, que
o ar tinha aquela densidade de antes das tempestades, que o céu estava tapado
de nuvens cor de chumbo. Talvez se tratasse de uma coincidência feliz. Um
momento de alinhamento perfeito entre o clima e um acontecimento, como uma
espécie de anúncio do que estaria para acontecer. De facto, desde esse primeiro
momento, talvez a relação amorosa do meu amigo poeta e Rita pudesse ser
definida precisamente nos mesmos moldes: guerra o tempo todo.
Nessa sexta-feira abafada, o meu amigo poeta
aproximou-se da caixa, depois de cuidadosamente ter feito as suas escolhas de
leitura. Trazia debaixo do braço três periódicos: um diário, um semanário e uma
revista pornográfica que saía de três em três meses, cuidadosamente envolvida
pelas outras duas publicações, para que a restante freguesia não pudesse saber
do conteúdo das mesmas. Estava já a pegar na carteira para efectuar o
pagamento, quando o seu corpo chocou contra outro corpo e, no instante do impacto,
os jornais e as revistas se espalharam no meio do chão da tabacaria.
A mulher com quem embatera nem sequer se tinha
apercebido do embaraço do meu amigo poeta quando bradou, em tom severo:
“Veja lá por onde anda!”
“Eu?!?”, ripostou, flamejante, o meu amigo
poeta. “E você? Não podia ter um pouco mais de cuidado? E de respeito, já
agora?”
Seguiu-se um instante tão cómico quanto tenso.
Os dois olharam-se, de pé, muito quietos, dominados por uma imensa raiva,
enquanto entre eles, a imagem de uma mulher de pernas abertas se exibia perante
o resto da clientela. Pareciam dispostos a prolongar aquele combate de olhares
até ao fim dos tempos. Como se qualquer um deles pudesse acabar com a
existência do outro limitando-se a mirá-lo.
Visivelmente indignado, o meu amigo poeta lá
desistiu do duelo, dedicando-se a apanhar o que lhe tinha caído ao chão.
“Vá. Passe. Cedo-lhe a vez”, resmungava ele
enquanto se entretinha a reorganizar aquela embrulhada toda.
Ela não se fez rogada. Nem respondeu. Comprou
uma quantidade impensável de tabaco de diferentes marcas e categorias. A
empregada movimentava-se atrás do balcão, nervosa e atarefada, à procura do
tabaco enrolado, do tabaco de enrolar, das mortalhas, dos filtros e,
finalmente, dos isqueiros.
O meu amigo poeta, que estava atrás dela, viu
naquilo uma oportunidade de se vingar.
“Não precisa de mais nada?”, perguntou ele.
“Parece-me que se esqueceu dos cachimbos.” E, apesar de ser ali o único a
fazê-lo, não se conteve na hora de começar a rir-se às gargalhadas no meio
daquele cenário cada vez mais carregado.
Ela, contudo, não perdeu a compostura. Não era
de se deixar ficar face a semelhante atentado.
“Tenha lá um bocadinho de paciência”, disse
ela, num tom artificialmente calmo, “já o deixo ir para casa bater a sua
punheta enquanto se baba para cima das imagens das meninas.”
Mal o disse, saiu do estabelecimento. A pose
altiva e segura sugeria que o episódio pouco ou nada a afectara.
O meu amigo poeta comportou-se de forma
parecida. Pagou o que levava debaixo do braço com a maior dignidade que
conseguiu reunir e foi à sua vida.
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XXXII
A segunda vez que o meu amigo poeta pôs os
olhos naquela mulher coincide com a primeira vez que eu a vi. Já não sei bem a
que propósito, mas estávamos a jantar em casa do Mendonça. Até ali, nem eu, nem
o meu amigo tínhamos participado muito activamente nas conversas, pelo simples
motivo de que estas eram aborrecidíssimas. Um colega de curso do Mendonça ia
monopolizando a tertúlia, proferindo banalidade atrás de banalidade. Era um
tipo com uma camisa indescritível, pois continha nuances de todas as cores do
arco-íris num padrão muito pouco agradável. As pontas do bigode fino e engomado
apontavam para cima e os pequenos óculos quadrados não ajudavam.
Um discurso particularmente enfadonho que o
sujeito fez versava sobre a bossa nova e a sua incrível beleza exótica, mas
também se fartou de comentar muitas outras coisas que considerava de valor
artístico extremamente elevado, e relativamente às quais eu e o meu amigo poeta
não podíamos estar mais desinteressados. O resto do tempo, como já seria de
esperar, uma vez que se tratava de um artista,
passou-o a discursar sobre a sua própria obra, num tom de auto-elogio
verdadeiramente embaraçoso. Recordo-me, por exemplo, de o ter ouvido dizer que
achava a forma como o surrealismo afectara a progressão da sua obra um processo
positivamente fascinante. Resumindo, já não o podíamos ouvir. Apenas Elisa, uma
donzela com ar de barbie, dotada de um par de pernas exemplar e pouca massa
cinzenta, o continuava a ouvir embevecida, contentíssima por poder privar com
um verdadeiro criador.
Quanto ao meu amigo poeta, por vezes não
conseguia evitar soltar alguns rosnados, felizmente em tom baixo, mas lá se
continha, optando por encher de novo o seu copo de vinho e voltar novamente o
seu olhar para o peixe grelhado que tinha diante de si, evitando assim
contemplar o triste espectáculo que se desenrolava à sua frente. E, quanto a
mim, fez muito bem. Dadas as condições, o peixe e o vinho eram mesmo as únicas
coisas que se aproveitavam ali.
Até que a campainha e Mendonça se ergueu de
repente, certamente agradado com a possibilidade de deixar de ouvir o seu
colega durante alguns segundos.
“Ah! Deve ser o Ramalho! Só um momento…”
Desapareceu da sala para ir abrir a porta. O
seu colega aproveitou para referir que já há muito que não participava numa
tertúlia tão interessante, ao que o meu amigo poeta respondeu com um aceno de
cabeça pouco convicto antes de voltar a olhar para o prato e espetar o garfo
com força contra o lombo do peixe, sobressaltando-me.
Depois, o Mendonça regressou. Com ele vinha
também o Ramalho, que também já conhecíamos. Dava aulas de filosofia. Com eles,
entrou ainda uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelo curto, magra. Tinha
feições severas, um pouco masculinas para meu gosto, e uma pose algo rígida.
Creio que, já nesse momento, não gostei dela. Mas reparei que o meu amigo poeta
corou quando a viu entrar.
O Mendonça, empenhado no seu papel de
anfitrião, tratou de fazer as apresentações. A mulher chamava-se Rita. Quando
Mendonça apresentou o meu amigo poeta, Rita interrompeu-o.
“Nós já nos conhecemos…”, disse ela, com uma
inflexão interrogativa, como se à espera de uma confirmação.
“Parece que sim”, respondeu o meu amigo poeta.
“Já sei”, disse ela, “a tabacaria.”
“Pois”, disse o meu amigo poeta, com um
sorriso amarelo, “a tabacaria.”
“Conseguiu ler aquilo tudo?”
O meu amigo poeta não chegou a responder. O
Mendonça, que não tinha percebido nada, interrompeu-o:
“Claro que sim. Este aqui lê que nem um
desalmado.” E acrescentou, em tom mais sério, como se explicasse o que acabara
de dizer: “ele é poeta.”
“Que interessante”, disse Rita, com uma
pontinha de sarcasmo que quase ninguém percebeu.
“Não é nada interessante, menina”, disse o meu
amigo poeta. “Chegou a comprar os cachimbos?”
“Não, não. Não sei se lhe cheguei a dizer, mas
não fumo cachimbo.”
Depois, sentaram-se os três. O resto da
refeição decorreu tal como estava a decorrer antes. Verificava-se apenas uma
pequena mudança. Enquanto o escultor falava, o meu amigo poeta olhava menos
para o peixe e observava de soslaio aquela mulher. Para minha surpresa, ela
olhava-o também.
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XXXIII
Às vezes, quando
alguém passa em revista os acontecimentos que antecedem uma relação
amorosa, a frase aconteceu
naturalmente acaba por
vir à baila enquanto se descreve a coisa. Pois bem, esta é uma
daquelas frases que não nos servem de nada neste momento. Entre Rita
e o meu amigo poeta nada aconteceu naturalmente. E, pensando bem no
caso, as coisas não podiam ter ocorrido de outra forma que não
fosse a menos natural de todas.
Mal terminámos o
peixe, um golpe do acaso livrou-nos do maldito escultor. Alguém lhe
mandou um bip (não me perguntem porquê, mas o tipo tinha mesmo um
bipper e dava-se com pessoas que também o utilizavam) para lhe dizer
que lhe tinham assaltado o atelier. O incidente acabou por livrar-nos
também da barbie, que se disponibilizou de imediato a acompanhá-lo,
o que não correu tão bem quanto isso, mas o profundo alívio de
vermos aquele distinto cavalheiro pelas costas compensava facilmente
tudo o resto. Lembro-me perfeitamente do sorriso largo do meu amigo
poeta assim que percebeu que a palavra assalto
se referia a um espaço que o afectava directamente.
A conversa passou a
fluir muito mais livremente. Já não tínhamos de ouvir monólogos
intermináveis. As descrições sobre a obra do escultor deram lugar
a relatos em que o humor e a boa disposição eram a nota dominante.
À medida que os convivas iam bebendo e conversando, reparei que o
meu amigo poeta e Rita se fixavam cada vez mais um no outro, até que
chegou um momento em que se abstiveram da discussão principal e
começaram a falar sozinhos. Não era uma discussão amena. Pelo
contrário, sempre que a oportunidade se apresentava, picavam-se um
ao outro sem qualquer hesitação. Os termos em que o faziam não
eram propriamente pacíficos.
Contudo, tiveram
sempre tacto suficiente para que a conversa não azedasse tanto que
fosse impossível retroceder para terrenos mais amenos. E, talvez
mais importante que tudo o resto, pareciam estar a gostar daquilo.
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XXXIV
Estava tudo a correr muito bem,
até que o Mendonça entrou na sala com uma expressão embaraçada.
“Acabou-se o vinho”, disse
ele. Depois, pôs-se a justificar aquela falha, a dizer que tinha
feito mal as contas no supermercado, a explicar que tinha calculado
um determinado número de centilitros de vinho por pessoa, que era
como habitualmente fazia, mas que se enganara depois a converter os
centilitros em litros e, consequentemente, a reconvertê-los num
número de garrafas adequado ao número de convivas.
“Espero que me desculpem. Mas
que maçada”, terminou ele.
“Uma vergonha, Mendonça”,
disse o meu amigo poeta, “uma vergonha.” E começou a rir-se às
gargalhadas. “Oh, mas que civilizado que está o nosso anfitrião
de hoje!” Pôs uma pose de empregado de café, servil e empedernida
e, voltando-se para os restantes: “Desculpem pela maçada!”
Eu não achei grande piada
àquilo, mas a Rita e o Ramalho riam-se às gargalhadas. E o truque
acabara ainda por surtir o efeito desejado: o Mendonça estava já um
pouco mais tranquilo e ria também, um riso mais contido, mas, mais
importante, um riso de despreocupação.
Acabámos por decidir que
prolongaríamos a noite noutro local. Foi Ramalho que escolheu o
destino seguinte. Pelos vistos, uma outra amiga dele ia abrir uma
casa, e aquela era a noite da inauguração. Apesar de já se ter
comprometido em estar presente no evento, disse que ia para onde nós
escolhêssemos ir, porque a noite lhe estava a saber bem, mas toda a
gente aceitou.
A noite estava agradável e
completava bem o nosso estado de espírito. Estava uma brisa fria,
mas não demasiado fria, que nos despertava do torpor em que nos
encontrávamos antes, devido ao conforto da refeição e da
temperatura quente da casa do nosso anfitrião. A lua irradiava uma
luz branca que destacava os contornos das árvores da avenida.
Eu, o Ramalho e o Mendonça
seguíamos à frente, embrenhados na discussão de um acontecimento
político recente do qual, sinceramente, já não me recordo.
Lembro-me, contudo, de olhar varas vezes para trás, discretamente, e
de vê-los a caminharem lado a lado, muito próximos um do outro.
Falavam num volume muito baixo, quase por sussurros. Rita tinha um
sorriso mais aberto do que o dele, mais transparente e generoso. O
sorriso do meu amigo poeta era mais contido. Calculo que o tentasse
dissimular para que o seu rosto não se transformasse rapidamente no
rosto frágil e embevecido de um apaixonado. Caminhavam ambos com os
rostos voltados para a frente. Evitavam olhar-se muitas vezes e,
quando isso acontecia, faziam-no rapidamente, quase a medo. Volta e
meia, desviavam-se o suficiente do seu rumo para um braço dela e um
braço dele pudessem roçar, ainda que ao de leve, um no outro.
Estavam envolvidos por uma espécie de sincronismo difícil de
descrever. Aparentemente, os seus corpos entendiam-se sem precisarem
olhar um para o outro.
Todos estes sinais
constituíram, para mim, uma confirmação suficiente. Já não me
restavam dúvidas. Havia qualquer coisa a acontecer ali.
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XXXV
Depois, o bar. Não era um sítio
péssimo, se tomarmos em consideração a atenuante de este episódio
ter decorrido nos anos 80. O que isso significa, para aqueles que
viveram esses tempos, é que o sítio também não valia muito a
pena. Claro que tudo o que a década teve de bom (muito pouca coisa,
na minha opinião) estava ali ausente. Se a palavra ABBA provocar
calafrios ao estimado leitor, especialmente quando associada a bolas
de espelhos, está do meu lado. Se não, pronto. Que se pode dizer?
Talvez o leitor tivesse gostado mais de ali ter estado do que eu.
Talvez sentisse o mesmo face à decoração e às farpelas
extravagantes que os comensais ostentavam um pouco por toda a parte.
Enfim, resumamos, para assim podermos parar de divagar: estávamos
perante o pós-modernismo na sua maior manifestação de força.
Assim que entrámos, Ramalho
apresentou-nos a sua amiga, que por sua vez nos apresentou as amigas.
As coisas começavam a compor-se. O meu amigo poeta, claro, nem ligou
às donzelas. Só tinha olhos para a Rita. Conversavam sem parar e
iam bebendo a bom ritmo, ao mesmo tempo que o Mendonça ia
conseguindo enrolar uma das raparigas que nos tinham apresentado.
Entretanto, chegou o namorado do Ramalho, que nunca tinha visto. A
descoberta não me espantou muito. A rapariga que sobrava meteu
conversa comigo, mas o arranjo não me entusiasmou muito. Não é que
fosse feia, mas não era fácil de aturar nem interessante. Apesar de
me parecer que ela estava disposta a vir-se embora dali comigo,
percebi imediatamente que isso me daria mais trabalho do que
proveito.
Aguentei uma hora,
hora e meia, e acabei, muito naturalmente, por ser o primeiro a sair.
Estava tudo mais ou menos na mesma, excepto os níveis de alcoolemia
dos meus companheiros, que subiam progressivamente. Achei que já não
ia perder grande coisa, despedi-me deles e fui embora dali. Pelo que
soube depois, no entanto, os acontecimentos da noite estavam apenas
no início.
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XXXVI
Decorreu, nessa estranha noite,
um fenómeno chocante: o meu amigo poeta dançou. Sim, o meu amigo
poeta dançou. O meu amigo poeta, que nunca dançava, pois abundavam
os motivos para não o fazer. O maior pé de chumbo à face do
planeta, capaz de elevar o conceito de descoordenação motora a
patamares até então desconhecidos pela espécie humana, e cujo
sentido de ritmo podia ser descrito muito facilmente, porque
simplesmente não existia, dançou. O que talvez não seja o melhor
termo para descrever o modo como o corpo do meu amigo poeta se move
quando este ouve música, mas, enfim, à falta de outro verbo,
admitamos que ele dançou. E tudo, claro, por causa de uma mulher:
Rita.
Primeiro, convidou-o, mas o meu
amigo poeta negou-se a pisar sequer a pista de dança:
“Não há mal nenhum. Vá lá,
que eu fico aqui à espera.”
Rita não foi, mas também não
era mulher para aceitar um não como resposta assim tão facilmente.
Mudou de estratégia. Desafiou-o. Troçou da sua falta de coragem.
Contudo, o meu amigo poeta parecia resoluto:
“Não”, disse ele, “de modo
algum”.
Rita, claro, não abdicou.
Pedinchou. Fez chantagem emocional. Fingiu que estava triste. Que
precisava de se animar um pouco. Que a sua vida não andava grande
coisa. Truques baixos, portanto. E o meu amigo poeta caiu que nem um
patinho. Quando deu por si, o slow que lhe tinha prometido
transformou-se em sonoridades mais mexidas. Quanto a Rita, segundo
disse depois, divertiu-se que nem uma doida a vê-lo naqueles
desmandos, sobretudo quando a figura de urso dançante que o meu
amigo poeta fazia atingiu o seu píncaro, ao som da adequadíssima
dancing fool
de Frank Zappa. Para que o caro leitor possa ter noção do nível de
arrojo que atingiu, o facto de o Mendonça me ter depois contado que
o viu em cima de uma das colunas da discoteca a tocar o solo de
guitarra num instrumento imaginário deve ser suficiente.
A música acabou quase de manhã,
encerrando finalmente o triste espectáculo que o meu amigo poeta
protagonizara.
“Bem, parece que vamos embora”,
disse ele tristemente, antecipando já o cair a pique de toda aquela
euforia.
“Pois”, disse Rita.
Foram à procura do Mendonça. O
meu amigo poeta precisava de boleia e tinha calhado a Mendonça a
tarefa de o transportar. Havia apenas um problema nesse plano. O
Mendonça já não estava na discoteca, mas sim no seu atelier,
com a outra amiga. O que não era de espantar, pois era um engodo que
usava com frequência junto das fêmeas que despertavam o seu
interesse. Elas tinham sempre de ver, oh sim, absolutamente, tinham
mesmo de ver as esculturas para perceberem melhor.
“Que merda”, lamentou-se o
meu amigo poeta, já à porta do estabelecimento, imaginando a longa
caminhada que agora teria de fazer.
“Não faz mal”, disse Rita.
“Eu levo-te. O meu carro não está assim tão longe.”
Ele sentiu-se um
pouco embaraçado com aquilo. Não lhe apetecia muito terminar a
noite a dar-lhe trabalho e, por qualquer motivo, vieram-lhe à cabeça
as formas mais terríveis de aquele encontro chegar a um desfecho.
Mas a escolha entre fazer aqueles quilómetros todos a pé, ou
confortavelmente sentado no interior de um automóvel na companhia de
Rita não era muito difícil. E o meu amigo poeta agradeceu e
aceitou.
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XXXVII
Nascia já o dia quando, no carro
de Rita, o meu amigo poeta estranhou o facto de não estar a
reconhecer o caminho que percorriam. Parecia-lhe que estavam a
afastar-se de sua casa e não a aproximar-se dela. Talvez não lhe
tivesse dado as indicações correctas.
“Que estranho”, disse o meu
amigo poeta, “não estou a reconhecer o caminho. Não estaremos a
dar uma volta do caneco?”
Rita não respondeu.
“A Rita sabe por onde é que
estamos a ir?”
“Não é por onde, pá. É para
onde.”
“Como?”
“Não é por onde estamos a ir,
é para onde.”
“Não estou a perceber.”
Neste ponto, Rita suspirou,
exasperada pelas reduzidas capacidades dedutivas do meu pobre amigo
poeta.
“Estamos a ir para minha casa.”
“Para sua casa?”
Desta vez, Rita bufou.
“Sim, porra. Claro. E se calhar
já era altura de me tratares por tu.”
O meu amigo poeta hesitou.
“Não queria abusar”, disse
ele.
Rita revirou os olhos. Houve uma
pausa na conversa. Com uma manobra brusca, deu uma guinada no
volante, fazendo o carro trepar o passeio e estancar. O meu amigo
poeta, além de se ter assustado, não estava a perceber nada
daquilo. Olhou para ela. Viu-a puxar o travão de mão e inspirar
fundo antes de se voltar para ele, muito séria.
“Ouve lá, tu não queres
foder?”
Silêncio. O meu amigo poeta,
cheio de vergonha, pôs-se a limpar os óculos. Tentou pensar em
alguma coisa interessante para dizer. Quando falou, tentou fazê-lo
com segurança, mas a voz tremia-lhe:
“Gosto mais da ideia de fazer
amor”, disse ele. “Mas sim, claro que sim. Pode ser.”
Rita deixou escapar uma
gargalhada.
“Tu és sempre assim?”
“Assim, como?”
“Que personagem!”
E arrancou tão
bruscamente como antes parara, ignorando por completo o olhar de
protesto que o meu amigo poeta lhe lançou.
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XXXVIII
Quando o meu amigo poeta acordou,
estranhou primeiro o cheiro a tabaco. Doía-lhe a cabeça, o que não
era de estranhar. Estava deitado, sozinho numa cama de casal cujos
lençóis estavam completamente revolvidos. O quarto ostentava as
marcas de uma ocupação recente. Havia duas malas de viagem ainda
por abrir, a mobília reduzia-se ao essencial e não existia ali
decoração alguma.
Rita, de roupão, estava sentada
em frente à mesa vazia a terminar o café enquanto fumava um
cigarro. O meu amigo poeta viu-a. Depois levantou o lençol. Estava
nu. Pedaços da noite anterior vieram-lhe à cabeça e lá acabou por
perceber porque é que estava ali.
Levantou-se com muito cuidado e
avançou na direcção dela, muito devagarinho, nos bicos dos pés.
Beijou-a na parte de trás do pescoço, ao de leve. Ela assustou-se.
Com um pulo, voltou-se para trás, de boca aberta.
Depois, falaram os dois ao mesmo
tempo:
“Bom dia”, disse o meu amigo
poeta, armado em don Juan, em tom muito suave.
“Estás parvo?”, gritou ela,
enfurecida.
Olharam-se por um momento, cada
qual pasmado com a reacção do outro. Rita foi a primeira a
recompor-se.
“Pisga-te”, disse ela, “tenho
montes de coisas para fazer.”
O meu amigo poeta ficou
indignado.
“Desculpe?...”, protestou
ele.
“Que é que foi? Ontem à noite
foi ontem à noite. Já passou. Hoje é outro dia.
Não sou grande apreciadora de
beijinhos no dia seguinte.”
O meu amigo poeta não sabia o
que dizer. Estava nu, de pé, em frente a ela, e não se lembrava
completamente do desfecho da noite anterior. Sentia-se desorientado,
desarmado. Rita, satisfeita com o efeito das suas palavras, deu uma
passa no cigarro.
“A porta é ali”, disse ela,
de braço estendido.
O meu amigo poeta ouviu aquilo e
rosnou, mas não disse nada. Apanhou a sua roupa do chão, sentou-se
no lado da cama e começou a vestir-se.
Estava já a abotoar a camisa,
que estava toda manchada, quando se voltou para ela. Falou-lhe num
tom frio:
“O mínimo que se faz depois de
fazer amor com alguém é oferecer-lhe um café pela manhã.”
Rita riu-se.
“Não quando essa pessoa
adormece em cima de ti”, respondeu ela. E acrescentou, marcando bem
as palavras: “Não depois de fazer amor, mas durante.”
O meu amigo poeta pensou durante
um instante antes de responder:
“Se calhar, estava aborrecido.”
Rita bufou. O rosto começava a
corar de raiva. A respiração tornava-se pesada.
“Se calhar, estavas bêbado.”
O meu amigo poeta desistiu da
discussão. Vestiu-se e, com um passe bem dos mais azedos, abriu a
porta e foi-se embora. Ligou-me para passar no café e, à tarde,
contou-me o que se tinha passado. Apesar de tudo, o seu orgulho de
macho estava em grande.
“Já viste isto?”, disse ele,
sorridente, “adormeci em cima dela!”
E ria-se que nem um perdido.
Falou daquilo durante montes de tempo. Começava a tornar-se difícil
aturá-lo. Depois, chegou o Mendonça e contou-nos que se tinha
deitado com a outra. Descreveu tudo com um grau de detalhe que me
pareceu um pouco escusado, exaltando sempre que podia os seus dotes
na arte do amor físico.
Pelo menos, o meu
amigo poeta calou-se.
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XXXIX
Na semana seguinte, o meu amigo
poeta volta a encontrar Rita, novamente por intermédio de Mendonça
e de Ramalho. Eu também estou presente. Falam um com o outro sem
grande entusiasmo. Evitam responder um ao outro. Quando se olham,
fazem-no com expressões de indiferença.
Há um momento em que o meu amigo
poeta faz uma piada qualquer. Rita é a única que se ri. As coisas
evoluem novamente. Passam a falar mais. Tornam-se mais calorosos um
com o outro. Percebem que se entendem. Distraem-se naquilo e acabam
por beber outra vez mais do que os restantes convivas, que estranham
tudo aquilo, mas não interferem. Contudo, não bebem tanto como da
outra vez.
No fim da noite, o meu amigo
poeta disponibiliza-se para a acompanhar a casa, apesar de esta ficar
na outra ponta da cidade. Rita hesita, mas aceita a proposta. Quando
chegam, convida-o a subir, mas explica-se logo:
“É só para tomar um café”,
diz ela. “Ia-me saber bem a companhia.”
“Parece-me bem”, responde o
meu amigo poeta.
Sobem as escadas. Tomam café.
Conversam sobre a falta que faz a decoração. O meu amigo poeta diz
que, apesar de estar há anos na mesma casa, a dele não está muito
melhor. Ela acha isso curioso. E a ele também, também o acha
curioso. Ele pergunta porquê. Ela responde que ele é um homem
interessante. Ele não sabe o que há-de dizer, por isso mantém-se
calado. Mais vale não estragar agora tudo com comentários
disparatados, pensa ele, é melhor assim, parecer interessante. Ela
diz que gostava de um dia ver a casa dele. Ele pergunta porquê.
Curiosidade, responde ela. Tem um sorriso matreiro, sabe que lhe fica
bem. O meu amigo poeta diz que teria todo o gosto, ela dá uma
gargalhadinha muito seca e curta, ainda mais matreira. Ele insiste,
diz que está a falar a sério, que ela pode ir lá no dia seguinte.
Ela diz que não é má ideia. Ele diz que no dia seguinte nem tem
muito que fazer. Ela repete que não é má ideia, diz que fica
combinado. Neste ponto, o meu amigo poeta arrisca. Diz que se calhar
nem valia a pena pôr-se a caminho. Porque não dormir ali? Assim, de
manhã poderiam ir os dois. Ela faz uma pausa que o assusta. O meu
amigo poeta dá uma gargalhada, tentando dar a ideia de que não
estava a falar a sério. Corre-lhe bem, porque ela acha piada.
“Não é má ideia”, diz ela
pela terceira vez.
O meu amigo poeta passa a noite
com Rita. Fazem amor duas vezes. Nada de excepcionalmente bom, nada
de excepcionalmente decepcionante. Desta vez, ninguém adormece em
cima de ninguém durante o acto. No dia seguinte, o meu amigo poeta é
o primeiro a acordar. Olha para ela. Gosta do que vê. Chega mesmo a
sentir alguma emoção. Talvez carinho seja uma palavra exagerada.
Mas sente alguma coisa. Decide arriscar. Levanta-se, veste-se e vai
embora antes de ela acordar.
Mais tarde durante essa semana, o
telefone do meu amigo poeta toca. Rita está do lado de lá.
Convida-o para jantar. Quer conhecer melhor a cidade, ele podia
escolher um sítio. O meu amigo poeta tenta não soar demasiado
interessado na proposta, mas aceita, claro. Quando pousa o telefone,
está todo contente.
O jantar corre bem. Conhecem-se
melhor. O meu amigo poeta leva-a a casa, mostra-lhe poemas porque ela
lhe pede. Ela lê, enquanto o meu amigo poeta se sente exposto. Ela
diz que não desgosta. São bonitos, gosta das palavras, acha que têm
força. No entanto, alguns não fazem muito sentido para ela.
Conversam até tarde, sobre os poemas e sobre outras coisas. Dormem
juntos outra vez, depois de fazerem amor uma vez. Desta vez, olham-se
melhor. Entrelaçam-se no fim, deixam-se ficar assim até caírem no
sono. De manhã conversam um pouco enquanto tomam café e comem
torradas, depois de o meu amigo poeta se desculpar por não ter
grande coisa para comer em casa. Quando se despedem, ela abraça-o. O
meu amigo poeta sente-se desarmado. Durante os dias que se seguem, só
fala naquilo. Escreve alguns dos poemas mais melosos da sua vida
durante esse período.
Durante o mês seguinte, vêem-se
mais vezes, cada vez com maior frequência. A dada altura,
apercebem-se de que dormem juntos mais vezes do que sozinhos. Rita
passa três dias em casa do meu amigo poeta, que liga para o trabalho
a fingir que está doente. Ele percebe que gosta de a ter por perto,
que conseguem partilhar o mesmo espaço sem se atrapalharem um ao
outro. Pensa que ela pensa o mesmo. Diz-lhe que podia pegar nas
coisas e mudar-se para lá. Rita pensa um pouco. Hesita. Discutem o
assunto muito civilizadamente. Acabam por chegar a um acordo: de
manhã, trarão as coisas e juntos tratarão de fazer algumas das
alterações que ela lhe propôs ao apartamento.
No dia seguinte, o meu amigo
poeta acorda e volta-se para o lado, ainda sem abrir os olhos, à
procura dela. Já se habituou a tê-la por perto. O problema é que
não está ali ninguém. Nem Rita, nem sombra de Rita.
Os três meses seguintes não
serão fáceis para o meu amigo poeta.
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XL
Apesar de não ter notícias de
Rita, o meu amigo poeta mantém-se relativamente calmo durante dois
ou três dias. Depois, surge a inquietação. Procura-a em casa, na
tabacaria onde se viram pela primeira vez. Telefona ao Ramalho e ao
Mendonça, chega mesmo a ligar para minha casa, embora saiba que as
hipóteses de eu saber de alguma coisa são quase nulas. À medida
que vai repetindo o processo, durante a semana seguinte, a
inquietação transforma-se em angústia. Percebe que encontrá-la em
nada depende dos seus esforços, tenta retomar o seu quotidiano
normal.
Volta e meia, no café, o seu
olhar torna-se triste. É como se os seus olhos não vissem, como se
se limitassem a olhar. Suspira frequentemente. A pose torna-se a cada
dia mais indolente e mais mole, o olhar ausenta-se progressivamente.
Quase não fala. Depois, vai-se abaixo de uma forma que ninguém
seria capaz de antecipar. Deixa de sair de casa. Liga para o trabalho
a dizer outra vez que está doente. Qualquer coisa do fígado, acha
ele, mas não sabe bem o quê e não se quer pôr a gastar dinheiro
em médicos. A parte relevante é que a maleita é incapacitante. Não
pode, de modo nenhum, ir trabalhar.
Nos dois meses seguintes, eu, o
Mendonça e outros dos seus amigos bem que tentamos visitá-lo,
bombardeamo-lo com convites, mas nada. Era teimoso que nem uma porta,
não havia nada a fazer. Estava decidido a não sair e pronto. Começa
a acordar cada vez mais tarde. Passa o tempo a beber e a ouvir blues.
Troca o bagaço por whisky. Sente-se apático, sem vontade de agir, é
como se por obra divina toda a sua energia tivesse sido aspirada por
uma entidade desconhecida. À noite, por vezes, arrasta uma cadeira
para a varanda. Senta-se, bebe. Fica a ouvir o burburinho do trânsito
ao longe, entretem-se a tentar distinguir, sem grande ânimo, as
formas das coisas no escuro e pouco mais. Deixa de tomar banho. Deixa
de se barbear. Deixa de lavar os dentes. O lixo acumula-se pela casa.
Come muito menos do que habitualmente. Por vezes, vagueia de umas
divisões para as outras, muito lentamente, e dá por si a meio do
caminho sem saber muito bem o que está ali a fazer. Mais grave do
que isso, deixa de escrever. É a primeira vez em anos que passa
tanto tempo sem sequer aproximar a caneta do papel.
Pensa em Rita demasiadas vezes.
Não percebe nada do que se passou. Passa horas a imaginar o que lhe
diria se ela estivesse ali. Imagina também o que lhe responderia
ela, quais seriam as desculpas, as justificações, os protestos.
Dentro da sua própria cabeça, o meu amigo poeta discute longamente
com ela. Por vezes, exalta-se um pouco mais e, quando se apercebe,
está mesmo a falar sozinho, o rosto voltado para a sua frente como
se ela estivesse mesmo ali. Sente-se um imbecil por estar assim, mas
não consegue agir de outra forma. Só lhe dá para aquilo, para se
comportar como um adolescente de coração partido. Coisa que o
confunde ainda mais, que o leva a embrenhar-se ainda mais na cadeia
do seu pensamento. Fá-lo sentir vergonha, um forte confrangimento
para consigo mesmo.
Finalmente, lá há um dia em que
se sente um pouco mais enérgico, um pouco mais lúcido. Percebe que
aquilo não pode continuar. Em minha casa, o telefone toca. Atendo. A
resposta chega numa voz arrastada:
“Não queres vir cá jantar
hoje?”, pergunta o meu amigo poeta.
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XLI
Aceitei o convite do
meu amigo poeta, claro.
Falámos pouco
durante o jantar. No fim da refeição, deslocámo-nos até à
varanda, cada um com a sua caneca de café e um copo na mão, para
que eu pudesse fumar à vontade. Acendi um cigarro, enquanto o meu
amigo poeta abria uma garrafa de uísque e começava a tratar de
encher os copos.
Observei-o pelo
canto do olho. Era difícil habituar-me à ideia de que era mesmo
ele. O cabelo já longo, oleoso e desmazelado, a barba de dimensão
épica, onde era possível encontrar pedaços de lixo. Estava mais
magro, os movimentos eram mais pesados. Tudo nele era de uma lentidão
muito contida, desanimada.
“Por esta é que
eu não esperava”, disse eu, assim que ele me encheu o copo.
“Então?”
“O meu amigo poeta
de coração partido...”
O meu amigo poeta
não respondeu. Quando falou, fê-lo de um modo muito sério.
“Não estou assim
tão mal.”
“Nota-se.”
“Oh. Tangas.”
“Quase que
deixaste os bifes cozerem!”
“E isso prova
alguma coisa?”
“E a tua figura?
Tens-te visto ao espelho? Tens-te pesado?”
“E se te
calasses?”
“Pronto. Se queres
mudar de assunto, mudamos de assunto.”
Em vez de mudarmos
de assunto, gerou-se um silêncio incómodo. Coisa que, curiosamente,
costuma suceder quando duas pessoas tentam forçar-se a mudar de
assunto. Ou mesmo forçar-se a fazer qualquer coisa, qualquer que
seja a sua natureza. Esse tal silêncio foi longo. Por fim, o meu
amigo poeta suspirou. Olhou para o céu antes de falar.
“Foda-se. O
problema é que não percebo nada desta merda.”
Voltei-me para ele,
expectante.
“Ela vinha morar
para cá”, prosseguiu o meu amigo poeta, “já estava tudo
combinado. Ia mudar um monte de coisas de sítio e tudo. E depois,
puf. Desaparece. Assim, sem mais nem menos. Desaparece.”
Houve outra pausa.
“Bem. Já ouvi
dizer que os poetas são maus amantes. Pelos vistos, é verdade”,
disse eu.
O meu amigo poeta
devolveu-me um olhar irado. O rosto enruberesceu. O tom de voz era
crispado.
“O que é queres
dizer com isso, caralho?”
Larguei a rir às
gargalhadas.
Ele manteve-se sério
durante mais uns momentos. Por fim, acabou por rir-se também. Era a
primeira vez naquela noite. Provavelmente, era a primeira vez que se
ria nos últimos meses.
“Raios te partam,
pá. Se não fosses meu amigo, era gajo para te partir a cara.”
“Pois, pois. Bem
que podias tentar.”
O meu amigo poeta
riu-se outra vez, agora de forma mais contida. O seu olhar era já
mais vivo. Um sorriso ténue instalou-se-lhe na fronte.
“Obrigado, pá.
Estava a precisar disto.”
Ergueu o copo na
minha direcção. Ergui também o meu.
“À tua!”
“À nossa!”
Depois, a noite
tornou-se uma noite normal. Gastámos aquelas horas
despreocupadamente. Conversámos sobre banalidades, conversámos
sobre assuntos sérios, conversámos sobre os homens e sobre as
mulheres, sobre amigos e amantes.
E esvaziámos aquela
garrafa, eu e o meu amigo poeta.
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XLII
Nos dias que se
seguiram, a reabilitação sentimental do meu amigo poeta processa-se
em moldes que poderiam ser caracterizados como normais. Isto, claro,
se esquecermos o facto de que a normalidade de uma coisa, qualquer
que ela seja, nunca a caracteriza. Enfim, outros assuntos. O que
pretendo dizer é que, aos poucos e poucos, o meu amigo poeta lá foi
regressando à normalidade. Isto, claro, se esquecermos o facto de
que o meu amigo poeta nunca foi muito normal. Mas creio que massacrar
neste momento o leitor com assuntos que o leitor decerto conhecerá
já não será muito útil. Adiante, portanto. Resumamos: o meu amigo
poeta ia recuperando. Tomou banho, fez a barba e cortou o cabelo.
Arranjou outro trabalho. Ainda hoje não percebo muito bem como
conseguia ele trocar de ofício com tanta frequência, mas deixemos
ainda este assunto para um momento mais adequado. Trocou o whisky
pelo bagaço e a sua dieta musical voltou a ser caracterizada pelo
ecletismo anterior. E, talvez o mais importante de tudo, regressou ao
seu real ofício. O que equivale a dizer que voltou a escrever os
seus poemas. É digno de enfoque o facto de nenhum deles se debruçar
sobre o tema do amor. Sucedeu antes o contrário. O meu amigo poeta,
por aquela altura, andava de caneta em punho às voltas com a morte.
À primeira vista, dir-se-ia que a escolha do tema não fazia grande
sentido face ao contexto que ele vivia. Um segundo olhar, porém,
pode revelar uma relação mais estreita entre os dois temas, nem que
esta seja uma relação de contraste, conflito, ou radical oposição.
Devem ter passado um
ou dois meses até que o Mendonça termina um dos seus ciclos. O que
não tem nada de estranho, já que ele esculpia sempre por ciclos,
mas constitui o motivo para que surgisse o momento de os mostrar ao
público. Eu e o meu amigo poeta estávamos, claro, convidados para a
exposição. Eu fui porque o Mendonça era meu amigo e porque as
obras me interessavam. Quanto ao meu amigo poeta, pode dizer-se que
os motivos da sua comparência no evento se deviam mais ao facto de
ver nele uma oportunidade de comer e beber à vontade e sem gastar um
tostão. Até porque grande parte da fauna que aí encontraria não
lhe inspirava, segundo os seus próprios termos, grande confiança ou
curiosidade. E, nisso, creio que o percebia tão bem então como
hoje. A forma como as pessoas se comportam nesse tipo de ocasiões
faz-se de tudo menos honestidade e genuinidade. A maior parte das
pessoas faz o contrário: tenta parecer aquilo que não é. Tenta
parecer mais sensível, mais entendida, mais moderna, mais crítica,
mais opinativa do que no seu quotidiano. E as indumentárias que
arrastam consigo mais não fazem do que sublinhar esta breve mudança
de atitude. Normalmente, numa exposição, as pessoas têm tendência
a arriscar mais, pelo simples motivo de que querem atrair um pouco
mais de atenção. E os resultados não são bonitos.
Mas atalhemos. Às
cinco e meia da tarde, lá estávamos, eu e o meu amigo poeta, na
galeria. O Mendonça cumprimentou-nos com um sorriso largo. Trocámos
abraços e palavras de circunstância, antes de ele nos confidenciar:
“O vinho está
ali, atrás daquela mesinha. Vejam as coisas e tal, que eu passo lá
depois. O tinto é pomada. Aproveitem. Depois digam-me o que é que
acharam. Das esculturas. Não do vinho, claro, que esse já sei que é
bom.”
Aceitámos a
recomendação. Demos a voltinha da praxe. O meu amigo poeta torceu o
nariz à maior parte das esculturas.
“Às vezes, não
percebo onde é que este gajo tem a cabeça”, resmungava ele.
“Vê lá isso
depressa, para irmos ao vinho.”
“Ninguém te
obriga a veres isto à mesma velocidade que eu. Se tens pressa,
acelera para aí.”
O meu amigo poeta
franziu o sobrolho. Percorreu o resto das obras com uma
despreocupação e uma ligeireza desconcertantes e, assim que o fez,
estacionou ao lado da mesa das bebidas.
Devia estar já no
quarto ou quinto copo, quando uma voz familiar o sobressaltou.
“Por aqui?”,
perguntou Rita, muito calmamente.
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XLIII
“Por aqui?”, perguntou Rita,
muito calmamente.
Curiosamente, a primeira reacção
do meu amigo poeta, afinal um homem da palavra, foi absolutamente
física. Primeiro, pôs-se hirto e pálido, quase translúcido, como
se o sangue todo lhe houvesse abandonado o corpo num único instante.
Depois, o rosto avermelhou-se e a respiração, que antes quase
estancara, rearrancou com violência.
Ela olhava-o com a expressão
fechada que usava habitualmente, com uma indiferença e uma
serenidade que chegavam a ser perturbantes. Perante o silêncio do
meu amigo poeta, insistiu:
“Tudo bem?”
É neste momento que o meu amigo
poeta explode, ou melhor, tenta explodir, porque, apesar de abrir a
boca e de a vontade de gritar ser nítida, não foram palavras nem
berros o que saiu do seu corpo. Começa a gesticular com largura,
intensidade, irregularidade, em lanços bruscos e desconexos,
rapidamente interrompidos, enquanto balbucia e balbucia coisas
ininteligíveis, um homem no pico da sua desorientação. Depois
desiste e bufa e ronca. Sim, isso, o meu poeta bufou muito e com
muita força, tanto que acabou por provocar no rosto de Rita o surgir
de uma expressão genuinamente preocupada, ou pelo menos assim o
pareceu, porque ela franziu o sobrolho antes de perguntar:
“Estás bem?”
E nisto o meu amigo poeta pôs-se
muito sério, numa tentativa frustrada de manter a dignidade e
simular alguma indiferença perante aquela terceira afronta, a
dignidade e a indiferença que nele não existiam precisamente por
causa daquela mulher. Eram sobretudo os olhos que o traíam, tremiam
e disparavam ódio, sem conseguirem despregar-se do rosto dela. Assim
que falou, o estado alterado em que se encontrava tornou-se ainda
mais evidente.
“Foda-se”, disse o meu amigo
poeta.
Rita arregalou os olhos por um
instante, antes de abanar a cabeça para os lados, incrédula. Desta
vez, foi ela que não conseguiu falar.
Fez-se um silêncio
constrangedor. Neste momento, já toda a gente que ali estava olhava
para os dois da mesma forma que olharia para os animais do jardim
zoológico, em exposição dentro das respectivas jaulas.
“Foda-se”, repetiu o meu
amigo poeta.
E saiu dali a correr.
Rita não soube o que fazer.
Olhou para mim como se eu pudesse ajudar, mas eu não sabia como.
Abri os braços e encolhi os ombros, numa expressão de impotência.
“Desculpa”, disse eu, porque
ela não parava de olhar para mim.
“Não faz mal. A culpa é
minha”, disse ela.
Tentei ajudar. A cara dela,
sempre como se estivesse a pedir a ajuda, era difícil de suportar
sem reagir. Perguntar-lhe se não queria ir fumar um cigarro e
apontar para a saída foi o melhor que consegui improvisar. Ela
aceitou. Disse que sim, claro que sim, e a expressão era de alívio,
por poder fugir daquela multidão de olhares de esguelha. Saímos. Lá
fora, acendemos cigarros. Passámos alguns instantes a fumar em
silêncio.
“Bem. Calculo que ele me deve
odiar neste momento”, disse Rita.
“Não te preocupes. Isso
passa-lhe. Sempre teve queda para dramatismos”, respondi.
“Eu não queria que as coisas
tivessem acontecido desta maneira”, continuou ela. “Não queria
mesmo.”
Era a primeira vez que a via
assim. Afinal, ela não é um bloco de gelo, pensei eu. Queria
percebê-la. Hesitei um pouco antes de perguntar:
“Porque é que fizeste aquilo?”
“Aquilo?”
“Sim. Desaparecer assim.”
“É complicado”, disse ela.
Deu uma passa no cigarro, pensativa. “Ele assusta-me um bocado.”
“Claro. É maluco.”
Rita deixou escapar uma
gargalhada.
“Não! Dessa parte até gosto.”
“Então? Qual é a parte da
loucura dele que te preocupa?”
“Acho que é a parte de ele
precisar demasiado de mim. De precisar demasiado de me ter por
perto.”
Foi neste momento que uma voz,
vinda de trás de nós, nos interrompeu.
“Não sei o que é que lhe deu
essa ideia, menina.”
O meu amigo poeta estava sentado
na soleira da porta do edifício contíguo à galeria. Pelos vistos,
tinha ouvido a conversa toda, até porque estava a olhar para nós
com ar de quem se sente muito entretido.
“Estiveste aí durante este
tempo todo?”, perguntou Rita. “E, por amor de Deus, podes parar
de me tratar por menina o tempo todo? Já cansa.”
“Estive, sim, menina”,
respondeu o meu amigo poeta com um sorriso de troça estampado no
rosto.
“E não sabias dizer nada?”
“Para quê? Estava a gostar.
Além disso, não tenho grande prazer em interromper conversas
alheias.”
“Pelos vistos, ouvi-las não te
incomoda assim tanto.”
“É. Especialmente quando são
sobre mim.”
“Sobre ti? Como é que
consegues ser tão egocêntrico?”
Houve uma pausa. O meu amigo
poeta mudou o ângulo de ataque.
“Tens uma maneira muito
estranha de pedir desculpa”, disse ele. “E continuo a não
perceber muito bem porque é que achas que preciso demasiado de ter
perto.”
“É assim tão difícil
entender?”
“É. Não tem grande relação
com a realidade.”
“Ai não?”
“Não.”
“E aquela conversa toda de
quereres que me mudasse para tua casa? Não tem nada a haver com o
assunto, claro.”
O meu amigo poeta começava a
perder as estribeiras. Pôs-se de pé. Rita aproximou-se dele. Mais
uma vez, eu não sabia bem o que fazer. Provavelmente, teria feito
melhor em deixá-los sozinhos, mas estava tão confuso que a ideia
nem me passou pela cabeça.
“Uma coisa é querer ter uma
pessoa por perto. Outra coisa é precisar dela”, disse o meu amigo
poeta.
“Talvez. Mas não foi nada
disso que se passou”, respondeu Rita.
“Não sei o que é que te deu
essa ideia.”
“Talvez a forma como insististe
e insististe e insististe.”
“Não sei se isto conta para
alguma coisa, mas tenho uma vaga ideia de teres concordado.”
Rita suspirou, farta daquela
conversa. A sua expressão tornou-se mais focada, mais calma.
“Sabes qual é a tua sorte?”,
perguntou ela.
“Sorte? Qual sorte? Não, não
estou a ver.”
“É que eu também dei por mim
a precisar de ti. Apesar de seres um idiota com as mulheres.”
“Nesse caso, menina, talvez
tivesse sido melhor não ter andado a brincar com os meus
sentimentos.”
“A brincar com os teus
sentimentos!”, respondeu ela, com uma gargalhada irada. “Vês
como eu tenho razão?”
“Não, não estou a ver.”
“Uma frase tão imbecil só
podia ser dita por alguém que precisa mesmo de alguém a seu lado.”
“Na melhor das hipóteses,
Rita, precisei. Seja o que for, faz parte do passado.”
“Cala-te, estúpido! Achas que
sou assim tão burra?”
“Calo-me? E quando é que eu te
cha...?”
O meu amigo poeta não conseguiu
terminar o seu protesto. Rita empurrou-o contra a porta, lançou-se a
ele, agarrou-o e espetou a sua boca contra a dele. Ele ainda tentou
resistir, mas o fracasso foi quase imediato. Daí a pouco, era tal a
confusão de línguas, saliva, roçares de pernas e virilhas, mãos
dele no corpo dela e mãos dela no corpo dele, que me decidi,
finalmente, a regressar ao interior da galeria.
Já Rita e o meu
amigo poeta, mais ninguém os viu nessa noite. Felizmente.
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