18 junho 2014

o meu amigo poeta (XLIII)

 “Por aqui?”, perguntou Rita, muito calmamente.

Curiosamente, a primeira reacção do meu amigo poeta, afinal um homem da palavra, foi absolutamente física. Primeiro, pôs-se hirto e pálido, quase translúcido, como se o sangue todo lhe houvesse abandonado o corpo num único instante. Depois, o rosto avermelhou-se e a respiração, que antes quase estancara, rearrancou com violência.

Ela olhava-o com a expressão fechada que usava habitualmente, com uma indiferença e uma serenidade que chegavam a ser perturbantes. Perante o silêncio do meu amigo poeta, insistiu:

Tudo bem?”

É neste momento que o meu amigo poeta explode, ou melhor, tenta explodir, porque, apesar de abrir a boca e de a vontade de gritar ser nítida, não foram palavras nem berros o que saiu do seu corpo. Começa a gesticular com largura, intensidade, irregularidade, em lanços bruscos e desconexos, rapidamente interrompidos, enquanto balbucia e balbucia coisas ininteligíveis, um homem no pico da sua desorientação. Depois desiste e bufa e ronca. Sim, isso, o meu poeta bufou muito e com muita força, tanto que acabou por provocar no rosto de Rita o surgir de uma expressão genuinamente preocupada, ou pelo menos assim o pareceu, porque ela franziu o sobrolho antes de perguntar:

Estás bem?”

E nisto o meu amigo poeta pôs-se muito sério, numa tentativa frustrada de manter a dignidade e simular alguma indiferença perante aquela terceira afronta, a dignidade e a indiferença que nele não existiam precisamente por causa daquela mulher. Eram sobretudo os olhos que o traíam, tremiam e disparavam ódio, sem conseguirem despregar-se do rosto dela. Assim que falou, o estado alterado em que se encontrava tornou-se ainda mais evidente.

Foda-se”, disse o meu amigo poeta.

Rita arregalou os olhos por um instante, antes de abanar a cabeça para os lados, incrédula. Desta vez, foi ela que não conseguiu falar.

Fez-se um silêncio constrangedor. Neste momento, já toda a gente que ali estava olhava para os dois da mesma forma que olharia para os animais do jardim zoológico, em exposição dentro das respectivas jaulas.

Foda-se”, repetiu o meu amigo poeta.

E saiu dali a correr.

Rita não soube o que fazer. Olhou para mim como se eu pudesse ajudar, mas eu não sabia como. Abri os braços e encolhi os ombros, numa expressão de impotência.

Desculpa”, disse eu, porque ela não parava de olhar para mim.

Não faz mal. A culpa é minha”, disse ela.

Tentei ajudar. A cara dela, sempre como se estivesse a pedir a ajuda, era difícil de suportar sem reagir. Perguntar-lhe se não queria ir fumar um cigarro e apontar para a saída foi o melhor que consegui improvisar. Ela aceitou. Disse que sim, claro que sim, e a expressão era de alívio, por poder fugir daquela multidão de olhares de esguelha. Saímos. Lá fora, acendemos cigarros. Passámos alguns instantes a fumar em silêncio.

Bem. Calculo que ele me deve odiar neste momento”, disse Rita.

Não te preocupes. Isso passa-lhe. Sempre teve queda para dramatismos”, respondi.

Eu não queria que as coisas tivessem acontecido desta maneira”, continuou ela. “Não queria mesmo.”

Era a primeira vez que a via assim. Afinal, ela não é um bloco de gelo, pensei eu. Queria percebê-la. Hesitei um pouco antes de perguntar:

Porque é que fizeste aquilo?”

Aquilo?”

Sim. Desaparecer assim.”

É complicado”, disse ela. Deu uma passa no cigarro, pensativa. “Ele assusta-me um bocado.”

Claro. É maluco.”

Rita deixou escapar uma gargalhada.

Não! Dessa parte até gosto.”

Então? Qual é a parte da loucura dele que te preocupa?”

Acho que é a parte de ele precisar demasiado de mim. De precisar demasiado de me ter por perto.”

Foi neste momento que uma voz, vinda de trás de nós, nos interrompeu.

Não sei o que é que lhe deu essa ideia, menina.”

O meu amigo poeta estava sentado na soleira da porta do edifício contíguo à galeria. Pelos vistos, tinha ouvido a conversa toda, até porque estava a olhar para nós com ar de quem se sente muito entretido.

Estiveste aí durante este tempo todo?”, perguntou Rita. “E, por amor de Deus, podes parar de me tratar por menina o tempo todo? Já cansa.”

Estive, sim, menina”, respondeu o meu amigo poeta com um sorriso de troça estampado no rosto.

E não sabias dizer nada?”

Para quê? Estava a gostar. Além disso, não tenho grande prazer em interromper conversas alheias.”

Pelos vistos, ouvi-las não te incomoda assim tanto.”

É. Especialmente quando são sobre mim.”

Sobre ti? Como é que consegues ser tão egocêntrico?”

Houve uma pausa. O meu amigo poeta mudou o ângulo de ataque.

Tens uma maneira muito estranha de pedir desculpa”, disse ele. “E continuo a não perceber muito bem porque é que achas que preciso demasiado de ter perto.”

É assim tão difícil entender?”

É. Não tem grande relação com a realidade.”

Ai não?”

Não.”

E aquela conversa toda de quereres que me mudasse para tua casa? Não tem nada a haver com o assunto, claro.”

O meu amigo poeta começava a perder as estribeiras. Pôs-se de pé. Rita aproximou-se dele. Mais uma vez, eu não sabia bem o que fazer. Provavelmente, teria feito melhor em deixá-los sozinhos, mas estava tão confuso que a ideia nem me passou pela cabeça.

Uma coisa é querer ter uma pessoa por perto. Outra coisa é precisar dela”, disse o meu amigo poeta.

Talvez. Mas não foi nada disso que se passou”, respondeu Rita.

Não sei o que é que te deu essa ideia.”

Talvez a forma como insististe e insististe e insististe.”

Não sei se isto conta para alguma coisa, mas tenho uma vaga ideia de teres concordado.”

Rita suspirou, farta daquela conversa. A sua expressão tornou-se mais focada, mais calma.

Sabes qual é a tua sorte?”, perguntou ela.

Sorte? Qual sorte? Não, não estou a ver.”

É que eu também dei por mim a precisar de ti. Apesar de seres um idiota com as mulheres.”

Nesse caso, menina, talvez tivesse sido melhor não ter andado a brincar com os meus sentimentos.”

A brincar com os teus sentimentos!”, respondeu ela, com uma gargalhada irada. “Vês como eu tenho razão?”

Não, não estou a ver.”

Uma frase tão imbecil só podia ser dita por alguém que precisa mesmo de alguém a seu lado.”

Na melhor das hipóteses, Rita, precisei. Seja o que for, faz parte do passado.”

Cala-te, estúpido! Achas que sou assim tão burra?”

Calo-me? E quando é que eu te cha...?”

O meu amigo poeta não conseguiu terminar o seu protesto. Rita empurrou-o contra a porta, lançou-se a ele, agarrou-o e espetou a sua boca contra a dele. Ele ainda tentou resistir, mas o fracasso foi quase imediato. Daí a pouco, era tal a confusão de línguas, saliva, roçares de pernas e virilhas, mãos dele no corpo dela e mãos dela no corpo dele, que me decidi, finalmente, a regressar ao interior da galeria.


Já Rita e o meu amigo poeta, mais ninguém os viu nessa noite. Felizmente.

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