20 maio 2014

o meu amigo poeta (XLI)

Aceitei o convite do meu amigo poeta, claro.

Falámos pouco durante o jantar. No fim da refeição, deslocámo-nos até à varanda, cada um com a sua caneca de café e um copo na mão, para que eu pudesse fumar à vontade. Acendi um cigarro, enquanto o meu amigo poeta abria uma garrafa de uísque e começava a tratar de encher os copos.
Observei-o pelo canto do olho. Era difícil habituar-me à ideia de que era mesmo ele. O cabelo já longo, oleoso e desmazelado, a barba de dimensão épica, onde era possível encontrar pedaços de lixo. Estava mais magro, os movimentos eram mais pesados. Tudo nele era de uma lentidão muito contida, desanimada.

Por esta é que eu não esperava”, disse eu, assim que ele me encheu o copo.

Então?”

O meu amigo poeta de coração partido...”

O meu amigo poeta não respondeu. Quando falou, fê-lo de um modo muito sério.

Não estou assim tão mal.”

Nota-se.”

Oh. Tangas.”

Quase que deixaste os bifes cozerem!”

E isso prova alguma coisa?”

E a tua figura? Tens-te visto ao espelho? Tens-te pesado?”

E se te calasses?”

Pronto. Se queres mudar de assunto, mudamos de assunto.”

Em vez de mudarmos de assunto, gerou-se um silêncio incómodo. Coisa que, curiosamente, costuma suceder quando duas pessoas tentam forçar-se a mudar de assunto. Ou mesmo forçar-se a fazer qualquer coisa, qualquer que seja a sua natureza. Esse tal silêncio foi longo. Por fim, o meu amigo poeta suspirou. Olhou para o céu antes de falar.

Foda-se. O problema é que não percebo nada desta merda.”

Voltei-me para ele, expectante.

Ela vinha morar para cá”, prosseguiu o meu amigo poeta, “já estava tudo combinado. Ia mudar um monte de coisas de sítio e tudo. E depois, puf. Desaparece. Assim, sem mais nem menos. Desaparece.”

Houve outra pausa.

Bem. Já ouvi dizer que os poetas são maus amantes. Pelos vistos, é verdade”, disse eu.

O meu amigo poeta devolveu-me um olhar irado. O rosto enruberesceu. O tom de voz era crispado.

O que é queres dizer com isso, caralho?”

Larguei a rir às gargalhadas.

Ele manteve-se sério durante mais uns momentos. Por fim, acabou por rir-se também. Era a primeira vez naquela noite. Provavelmente, era a primeira vez que se ria nos últimos meses.

Raios te partam, pá. Se não fosses meu amigo, era gajo para te partir a cara.”

Pois, pois. Bem que podias tentar.”

O meu amigo poeta riu-se outra vez, agora de forma mais contida. O seu olhar era já mais vivo. Um sorriso ténue instalou-se-lhe na fronte.

Obrigado, pá. Estava a precisar disto.”

Ergueu o copo na minha direcção. Ergui também o meu.

À tua!”

À nossa!”

Depois, a noite tornou-se uma noite normal. Gastámos aquelas horas despreocupadamente. Conversámos sobre banalidades, conversámos sobre assuntos sérios, conversámos sobre os homens e sobre as mulheres, sobre amigos e amantes.

E esvaziámos aquela garrafa, eu e o meu amigo poeta.

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