15 maio 2014

o meu amigo poeta (XL)

Apesar de não ter notícias de Rita, o meu amigo poeta mantém-se relativamente calmo durante dois ou três dias. Depois, surge a inquietação. Procura-a em casa, na tabacaria onde se viram pela primeira vez. Telefona ao Ramalho e ao Mendonça, chega mesmo a ligar para minha casa, embora saiba que as hipóteses de eu saber de alguma coisa são quase nulas. À medida que vai repetindo o processo, durante a semana seguinte, a inquietação transforma-se em angústia. Percebe que encontrá-la em nada depende dos seus esforços, tenta retomar o seu quotidiano normal.

Volta e meia, no café, o seu olhar torna-se triste. É como se os seus olhos não vissem, como se se limitassem a olhar. Suspira frequentemente. A pose torna-se a cada dia mais indolente e mais mole, o olhar ausenta-se progressivamente. Quase não fala. Depois, vai-se abaixo de uma forma que ninguém seria capaz de antecipar. Deixa de sair de casa. Liga para o trabalho a dizer outra vez que está doente. Qualquer coisa do fígado, acha ele, mas não sabe bem o quê e não se quer pôr a gastar dinheiro em médicos. A parte relevante é que a maleita é incapacitante. Não pode, de modo nenhum, ir trabalhar.

Nos dois meses seguintes, eu, o Mendonça e outros dos seus amigos bem que tentamos visitá-lo, bombardeamo-lo com convites, mas nada. Era teimoso que nem uma porta, não havia nada a fazer. Estava decidido a não sair e pronto. Começa a acordar cada vez mais tarde. Passa o tempo a beber e a ouvir blues. Troca o bagaço por whisky. Sente-se apático, sem vontade de agir, é como se por obra divina toda a sua energia tivesse sido aspirada por uma entidade desconhecida. À noite, por vezes, arrasta uma cadeira para a varanda. Senta-se, bebe. Fica a ouvir o burburinho do trânsito ao longe, entretem-se a tentar distinguir, sem grande ânimo, as formas das coisas no escuro e pouco mais. Deixa de tomar banho. Deixa de se barbear. Deixa de lavar os dentes. O lixo acumula-se pela casa. Come muito menos do que habitualmente. Por vezes, vagueia de umas divisões para as outras, muito lentamente, e dá por si a meio do caminho sem saber muito bem o que está ali a fazer. Mais grave do que isso, deixa de escrever. É a primeira vez em anos que passa tanto tempo sem sequer aproximar a caneta do papel.

Pensa em Rita demasiadas vezes. Não percebe nada do que se passou. Passa horas a imaginar o que lhe diria se ela estivesse ali. Imagina também o que lhe responderia ela, quais seriam as desculpas, as justificações, os protestos. Dentro da sua própria cabeça, o meu amigo poeta discute longamente com ela. Por vezes, exalta-se um pouco mais e, quando se apercebe, está mesmo a falar sozinho, o rosto voltado para a sua frente como se ela estivesse mesmo ali. Sente-se um imbecil por estar assim, mas não consegue agir de outra forma. Só lhe dá para aquilo, para se comportar como um adolescente de coração partido. Coisa que o confunde ainda mais, que o leva a embrenhar-se ainda mais na cadeia do seu pensamento. Fá-lo sentir vergonha, um forte confrangimento para consigo mesmo.

Finalmente, lá há um dia em que se sente um pouco mais enérgico, um pouco mais lúcido. Percebe que aquilo não pode continuar. Em minha casa, o telefone toca. Atendo. A resposta chega numa voz arrastada:


Não queres vir cá jantar hoje?”, pergunta o meu amigo poeta.

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