Apesar de não ter notícias de
Rita, o meu amigo poeta mantém-se relativamente calmo durante dois
ou três dias. Depois, surge a inquietação. Procura-a em casa, na
tabacaria onde se viram pela primeira vez. Telefona ao Ramalho e ao
Mendonça, chega mesmo a ligar para minha casa, embora saiba que as
hipóteses de eu saber de alguma coisa são quase nulas. À medida
que vai repetindo o processo, durante a semana seguinte, a
inquietação transforma-se em angústia. Percebe que encontrá-la em
nada depende dos seus esforços, tenta retomar o seu quotidiano
normal.
Volta e meia, no café, o seu
olhar torna-se triste. É como se os seus olhos não vissem, como se
se limitassem a olhar. Suspira frequentemente. A pose torna-se a cada
dia mais indolente e mais mole, o olhar ausenta-se progressivamente.
Quase não fala. Depois, vai-se abaixo de uma forma que ninguém
seria capaz de antecipar. Deixa de sair de casa. Liga para o trabalho
a dizer outra vez que está doente. Qualquer coisa do fígado, acha
ele, mas não sabe bem o quê e não se quer pôr a gastar dinheiro
em médicos. A parte relevante é que a maleita é incapacitante. Não
pode, de modo nenhum, ir trabalhar.
Nos dois meses seguintes, eu, o
Mendonça e outros dos seus amigos bem que tentamos visitá-lo,
bombardeamo-lo com convites, mas nada. Era teimoso que nem uma porta,
não havia nada a fazer. Estava decidido a não sair e pronto. Começa
a acordar cada vez mais tarde. Passa o tempo a beber e a ouvir blues.
Troca o bagaço por whisky. Sente-se apático, sem vontade de agir, é
como se por obra divina toda a sua energia tivesse sido aspirada por
uma entidade desconhecida. À noite, por vezes, arrasta uma cadeira
para a varanda. Senta-se, bebe. Fica a ouvir o burburinho do trânsito
ao longe, entretem-se a tentar distinguir, sem grande ânimo, as
formas das coisas no escuro e pouco mais. Deixa de tomar banho. Deixa
de se barbear. Deixa de lavar os dentes. O lixo acumula-se pela casa.
Come muito menos do que habitualmente. Por vezes, vagueia de umas
divisões para as outras, muito lentamente, e dá por si a meio do
caminho sem saber muito bem o que está ali a fazer. Mais grave do
que isso, deixa de escrever. É a primeira vez em anos que passa
tanto tempo sem sequer aproximar a caneta do papel.
Pensa em Rita demasiadas vezes.
Não percebe nada do que se passou. Passa horas a imaginar o que lhe
diria se ela estivesse ali. Imagina também o que lhe responderia
ela, quais seriam as desculpas, as justificações, os protestos.
Dentro da sua própria cabeça, o meu amigo poeta discute longamente
com ela. Por vezes, exalta-se um pouco mais e, quando se apercebe,
está mesmo a falar sozinho, o rosto voltado para a sua frente como
se ela estivesse mesmo ali. Sente-se um imbecil por estar assim, mas
não consegue agir de outra forma. Só lhe dá para aquilo, para se
comportar como um adolescente de coração partido. Coisa que o
confunde ainda mais, que o leva a embrenhar-se ainda mais na cadeia
do seu pensamento. Fá-lo sentir vergonha, um forte confrangimento
para consigo mesmo.
Finalmente, lá há um dia em que
se sente um pouco mais enérgico, um pouco mais lúcido. Percebe que
aquilo não pode continuar. Em minha casa, o telefone toca. Atendo. A
resposta chega numa voz arrastada:
“Não queres vir cá jantar
hoje?”, pergunta o meu amigo poeta.
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