12 julho 2012

o meu amigo poeta (I)

I

Não me recordo exactamente do ano em que o conheci. Corria a década de 70, faltavam um, dois, três anos para a revolução. Não consigo ser mais preciso do que isto. Sei que, na altura, andávamos os dois pela casa dos vinte e muitos, trinta. Foi numa festa de passagem de ano, em casa de um amigo que tínhamos em comum: o Bertinho, o coleccionador, que infelizmente já não está entre nós. Morreu um ou dois anos depois da noite em questão.

Era um gajo com as suas particularidades, o Bertinho. Sempre que o final de ano se aproximava, convidava toda a gente a passar lá em casa para um copito. O modesto convite revelava bem o seu modo de ser. Era muito dado aos eufemismos. Qualquer pessoa que recebesse pela primeira vez o convite para o tal copito certamente não imaginaria que o esperava uma festa de arromba, normalmente extensível até à tarde do dia seguinte, o primeiro do ano. Havia tudo do bom e do melhor. Uísque do bom, vinho do bom, cerveja a rodos, carnes, mariscos e presuntos de primeira categoria. E da animação também ninguém se podia queixar. Havia sempre um ou dois concertos, leituras ou declamações e números mais excêntricos que variavam de ano para ano. Lembro-me de um ano em que vieram três strippers e de um outro em que houve um pequeno número de circo, só para terem noção do tipo de coisa de que estou a falar.

Já o género de pessoa que por ali parava tinha muito pouco a ver com a opulência do evento. Era a maior corja de preguiçosos, bêbados e boémios que alguma vez se podia juntar. Dir-se-ia que aquela era a forma de Bertinho nos proporcionar um pequeno luxo uma vez por ano.

Eu estava a bater um couro a uma gaja, mas percebi rapidamente que ela não estava muito interessada em ir comigo a lado nenhum. O bom senso fez-me desistir e dedicar-me antes a procurar uma bebida. Atravessei o salão, subi as escadas para o terraço. Tratei de agarrar num copo de vinho e fui encostar-me à varanda. Acendi um cigarro e deixei-me ficar ali encostado, voltado para o jardim. Passaram dois ou três minutos e houve um gajo que se foi encostar a um ou dois metros de mim. Como não estava muito bem disposto, nem olhei para ele. Não tinha vontade de conversar. Mas ele, pelos vistos, não estava interessado noutra coisa.

“Corre-lhe mal a noite, hã…?”

Que bom, pensei eu. Um tagarela. Mesmo o que me apetecia. Ainda por cima, cheirava mal. Um odor azedo emanava do seu corpo. Eu sentia-o mais intensamente do que queria.

“Nem bem, nem mal”, respondi eu em tom seco.

Ele manteve-se calado por alguns momentos.

“Eu vi-o a falar com ela”, disse ele.

 Continuei a olhar para baixo, para o jardim: “Ai sim?”

Pareceu mesmo que, desta vez, ele tinha percebido. Mas não. Impressão errada. Aguentou calado mais uns segundos e depois começou a falar outra vez. Desta vez, manteve-se também voltado para a frente.

“Eu também tentei, sabe?”

Olhei para ele pela primeira vez. Tinha um copo de uísque na mão, quase a transbordar. Aquilo não era um uísque duplo, era pelo menos um uísque quádruplo. O corpo não se apoiava no varandim, dava antes a impressão de estar tombado por cima dele. Tinha o cabelo negro todo despenteado. Tinha vestidas umas calças de ganga velhas e o blazer mais coçado que alguma vez vi. Sobre o peito, uma grande mancha de vómito humedecido e mal limpo. E o gajo ali a dizer-me que também tinha tentado. Como se isso contasse para alguma coisa.

Repeti: “Ai sim?”

“Tentei, pois. É podre de boa. Mas há-de ir para a cama com um imbecil qualquer”, continuou ele. “Infelizmente, conheço bem o género.”

“Está a querer dizer com isso que ela não vai para a cama consigo?”

Parou para pensar durante um momento.

“Sim”, respondeu ele. “Nem comigo, nem consigo. Há-de ir com um imbecil qualquer. Tal como disse antes.”

Não respondi.

“Se não quiser conversar, ninguém o obriga”, disse ele.

“Ainda bem.”

“Pronto, já percebi”, disse ele.

Pôs os braços no ar para sublinhar aquilo que estava a dizer, como se alguém lhe tivesse apontado uma arma.

“Sou poeta, sabe? Não sou um imbecil qualquer”, disse ele, muito sério.

Depois, emborcou o uísque de uma vez, soltou um ronco e deu meia volta, meio a cambalear. Começou a caminhar em direcção ao carrinho das bebidas, com uma expressão aborrecida, mas, ao segundo passo, falharam-lhe as pernas. Caiu redondo no meio do chão.

Esperei um bocado para ver se alguém o ia ajudar. Felizmente, alguém foi pegar nele, o que me ilibou de responsabilidades maiores. Peguei no meu copo e regressei ao anterior do edifício.

Nessa noite, embebedei-me a sério. Acabei por aterrar num sofá, já de dia. E ali fiquei.  Mal eu sabia quem estaria ao meu lado quando acordasse.