I
Não me recordo exactamente do ano em que o conheci. Corria a década de 70, faltavam um, dois, três anos para a revolução. Não consigo ser mais preciso do que isto. Sei que, na altura, andávamos os dois pela casa dos vinte e muitos, trinta. Foi numa festa de passagem de ano, em casa de um amigo que tínhamos em comum: o Bertinho, o coleccionador, que infelizmente já não está entre nós. Morreu um ou dois anos depois da noite em questão.
Era um gajo com as suas particularidades, o
Bertinho. Sempre que o final de ano se aproximava, convidava toda a gente a
passar lá em casa para um copito. O modesto convite revelava bem o seu modo de
ser. Era muito dado aos eufemismos. Qualquer pessoa que recebesse pela primeira
vez o convite para o tal copito certamente não imaginaria que o esperava uma
festa de arromba, normalmente extensível até à tarde do dia seguinte, o
primeiro do ano. Havia tudo do bom e do melhor. Uísque do bom, vinho do bom,
cerveja a rodos, carnes, mariscos e presuntos de primeira categoria. E da
animação também ninguém se podia queixar. Havia sempre um ou dois concertos,
leituras ou declamações e números mais excêntricos que variavam de ano para
ano. Lembro-me de um ano em que vieram três strippers e de um outro em que
houve um pequeno número de circo, só para terem noção do tipo de coisa de que
estou a falar.
Já o género de pessoa que por ali parava tinha
muito pouco a ver com a opulência do evento. Era a maior corja de preguiçosos,
bêbados e boémios que alguma vez se podia juntar. Dir-se-ia que aquela era a
forma de Bertinho nos proporcionar um pequeno luxo uma vez por ano.
Eu estava a bater um couro a uma gaja, mas
percebi rapidamente que ela não estava muito interessada em ir comigo a lado
nenhum. O bom senso fez-me desistir e dedicar-me antes a procurar uma bebida. Atravessei
o salão, subi as escadas para o terraço. Tratei de agarrar num copo de vinho e
fui encostar-me à varanda. Acendi um cigarro e deixei-me ficar ali encostado,
voltado para o jardim. Passaram dois ou três minutos e houve um gajo que se foi
encostar a um ou dois metros de mim. Como não estava muito bem disposto, nem
olhei para ele. Não tinha vontade de conversar. Mas ele, pelos vistos, não
estava interessado noutra coisa.
“Corre-lhe mal a noite, hã…?”
Que bom, pensei eu. Um tagarela. Mesmo o que
me apetecia. Ainda por cima, cheirava mal. Um odor azedo emanava do seu corpo.
Eu sentia-o mais intensamente do que queria.
“Nem bem, nem mal”, respondi eu em tom seco.
Ele manteve-se calado por alguns momentos.
“Eu vi-o a falar com ela”, disse ele.
Continuei a olhar para baixo, para o jardim:
“Ai sim?”
Pareceu mesmo que, desta vez, ele tinha
percebido. Mas não. Impressão errada. Aguentou calado mais uns segundos e
depois começou a falar outra vez. Desta vez, manteve-se também voltado para a
frente.
“Eu também tentei, sabe?”
Olhei para ele pela primeira vez. Tinha um
copo de uísque na mão, quase a transbordar. Aquilo não era um uísque duplo, era
pelo menos um uísque quádruplo. O corpo não se apoiava no varandim, dava antes
a impressão de estar tombado por cima dele. Tinha o cabelo negro todo
despenteado. Tinha vestidas umas calças de ganga velhas e o blazer mais coçado
que alguma vez vi. Sobre o peito, uma grande mancha de vómito humedecido e mal
limpo. E o gajo ali a dizer-me que também tinha tentado. Como se isso contasse
para alguma coisa.
Repeti: “Ai sim?”
“Tentei, pois. É podre de boa. Mas há-de ir
para a cama com um imbecil qualquer”, continuou ele. “Infelizmente, conheço bem
o género.”
“Está a querer dizer com isso que ela não vai
para a cama consigo?”
Parou para pensar durante um momento.
“Sim”, respondeu ele. “Nem comigo, nem
consigo. Há-de ir com um imbecil qualquer. Tal como disse antes.”
Não respondi.
“Se não quiser conversar, ninguém o obriga”,
disse ele.
“Ainda bem.”
“Pronto, já percebi”, disse ele.
Pôs os braços no ar para sublinhar aquilo que
estava a dizer, como se alguém lhe tivesse apontado uma arma.
“Sou poeta, sabe? Não sou um imbecil
qualquer”, disse ele, muito sério.
Depois, emborcou o uísque de uma vez, soltou
um ronco e deu meia volta, meio a cambalear. Começou a caminhar em direcção ao
carrinho das bebidas, com uma expressão aborrecida, mas, ao segundo passo,
falharam-lhe as pernas. Caiu redondo no meio do chão.
Esperei um bocado para ver se alguém o ia
ajudar. Felizmente, alguém foi pegar nele, o que me ilibou de responsabilidades
maiores. Peguei no meu copo e regressei ao anterior do edifício.
Nessa noite, embebedei-me a sério. Acabei por
aterrar num sofá, já de dia. E ali fiquei. Mal eu sabia quem estaria ao meu lado quando
acordasse.