26 abril 2014

o meu amigo poeta (XXXIV)


Estava tudo a correr muito bem, até que o Mendonça entrou na sala com uma expressão embaraçada.

Acabou-se o vinho”, disse ele. Depois, pôs-se a justificar aquela falha, a dizer que tinha feito mal as contas no supermercado, a explicar que tinha calculado um determinado número de centilitros de vinho por pessoa, que era como habitualmente fazia, mas que se enganara depois a converter os centilitros em litros e, consequentemente, a reconvertê-los num número de garrafas adequado ao número de convivas.

Espero que me desculpem. Mas que maçada”, terminou ele.

Uma vergonha, Mendonça”, disse o meu amigo poeta, “uma vergonha.” E começou a rir-se às gargalhadas. “Oh, mas que civilizado que está o nosso anfitrião de hoje!” Pôs uma pose de empregado de café, servil e empedernida e, voltando-se para os restantes: “Desculpem pela maçada!”

Eu não achei grande piada àquilo, mas a Rita e o Ramalho riam-se às gargalhadas. E o truque acabara ainda por surtir o efeito desejado: o Mendonça estava já um pouco mais tranquilo e ria também, um riso mais contido, mas, mais importante, um riso de despreocupação.

Acabámos por decidir que prolongaríamos a noite noutro local. Foi Ramalho que escolheu o destino seguinte. Pelos vistos, uma outra amiga dele ia abrir uma casa, e aquela era a noite da inauguração. Apesar de já se ter comprometido em estar presente no evento, disse que ia para onde nós escolhêssemos ir, porque a noite lhe estava a saber bem, mas toda a gente aceitou.

A noite estava agradável e completava bem o nosso estado de espírito. Estava uma brisa fria, mas não demasiado fria, que nos despertava do torpor em que nos encontrávamos antes, devido ao conforto da refeição e da temperatura quente da casa do nosso anfitrião. A lua irradiava uma luz branca que destacava os contornos das árvores da avenida.

Eu, o Ramalho e o Mendonça seguíamos à frente, embrenhados na discussão de um acontecimento político recente do qual, sinceramente, já não me recordo. Lembro-me, contudo, de olhar varas vezes para trás, discretamente, e de vê-los a caminharem lado a lado, muito próximos um do outro. Falavam num volume muito baixo, quase por sussurros. Rita tinha um sorriso mais aberto do que o dele, mais transparente e generoso. O sorriso do meu amigo poeta era mais contido. Calculo que o tentasse dissimular para que o seu rosto não se transformasse rapidamente no rosto frágil e embevecido de um apaixonado. Caminhavam ambos com os rostos voltados para a frente. Evitavam olhar-se muitas vezes e, quando isso acontecia, faziam-no rapidamente, quase a medo. Volta e meia, desviavam-se o suficiente do seu rumo para um braço dela e um braço dele pudessem roçar, ainda que ao de leve, um no outro. Estavam envolvidos por uma espécie de sincronismo difícil de descrever. Aparentemente, os seus corpos entendiam-se sem precisarem olhar um para o outro.


Todos estes sinais constituíram, para mim, uma confirmação suficiente. Já não me restavam dúvidas. Havia qualquer coisa a acontecer ali.

o meu amigo poeta (XXXIII)


Às vezes, quando alguém passa em revista os acontecimentos que antecedem uma relação amorosa, a frase aconteceu naturalmente acaba por vir à baila enquanto se descreve a coisa. Pois bem, esta é uma daquelas frases que não nos servem de nada neste momento. Entre Rita e o meu amigo poeta nada aconteceu naturalmente. E, pensando bem no caso, as coisas não podiam ter ocorrido de outra forma que não fosse a menos natural de todas.

Mal terminámos o peixe, um golpe do acaso livrou-nos do maldito escultor. Alguém lhe mandou um bip (não me perguntem porquê, mas o tipo tinha mesmo um bipper e dava-se com pessoas que também o utilizavam) para lhe dizer que lhe tinham assaltado o atelier. O incidente acabou por livrar-nos também da barbie, que se disponibilizou de imediato a acompanhá-lo, o que não correu tão bem quanto isso, mas o profundo alívio de vermos aquele distinto cavalheiro pelas costas compensava facilmente tudo o resto. Lembro-me perfeitamente do sorriso largo do meu amigo poeta assim que percebeu que a palavra assalto se referia a um espaço que o afectava directamente.

A conversa passou a fluir muito mais livremente. Já não tínhamos de ouvir monólogos intermináveis. As descrições sobre a obra do escultor deram lugar a relatos em que o humor e a boa disposição eram a nota dominante. À medida que os convivas iam bebendo e conversando, reparei que o meu amigo poeta e Rita se fixavam cada vez mais um no outro, até que chegou um momento em que se abstiveram da discussão principal e começaram a falar sozinhos. Não era uma discussão amena. Pelo contrário, sempre que a oportunidade se apresentava, picavam-se um ao outro sem qualquer hesitação. Os termos em que o faziam não eram propriamente pacíficos.

Contudo, tiveram sempre tacto suficiente para que a conversa não azedasse tanto que fosse impossível retroceder para terrenos mais amenos. E, talvez mais importante que tudo o resto, pareciam estar a gostar daquilo.