Estava tudo a correr muito bem,
até que o Mendonça entrou na sala com uma expressão embaraçada.
“Acabou-se o vinho”, disse
ele. Depois, pôs-se a justificar aquela falha, a dizer que tinha
feito mal as contas no supermercado, a explicar que tinha calculado
um determinado número de centilitros de vinho por pessoa, que era
como habitualmente fazia, mas que se enganara depois a converter os
centilitros em litros e, consequentemente, a reconvertê-los num
número de garrafas adequado ao número de convivas.
“Espero que me desculpem. Mas
que maçada”, terminou ele.
“Uma vergonha, Mendonça”,
disse o meu amigo poeta, “uma vergonha.” E começou a rir-se às
gargalhadas. “Oh, mas que civilizado que está o nosso anfitrião
de hoje!” Pôs uma pose de empregado de café, servil e empedernida
e, voltando-se para os restantes: “Desculpem pela maçada!”
Eu não achei grande piada
àquilo, mas a Rita e o Ramalho riam-se às gargalhadas. E o truque
acabara ainda por surtir o efeito desejado: o Mendonça estava já um
pouco mais tranquilo e ria também, um riso mais contido, mas, mais
importante, um riso de despreocupação.
Acabámos por decidir que
prolongaríamos a noite noutro local. Foi Ramalho que escolheu o
destino seguinte. Pelos vistos, uma outra amiga dele ia abrir uma
casa, e aquela era a noite da inauguração. Apesar de já se ter
comprometido em estar presente no evento, disse que ia para onde nós
escolhêssemos ir, porque a noite lhe estava a saber bem, mas toda a
gente aceitou.
A noite estava agradável e
completava bem o nosso estado de espírito. Estava uma brisa fria,
mas não demasiado fria, que nos despertava do torpor em que nos
encontrávamos antes, devido ao conforto da refeição e da
temperatura quente da casa do nosso anfitrião. A lua irradiava uma
luz branca que destacava os contornos das árvores da avenida.
Eu, o Ramalho e o Mendonça
seguíamos à frente, embrenhados na discussão de um acontecimento
político recente do qual, sinceramente, já não me recordo.
Lembro-me, contudo, de olhar varas vezes para trás, discretamente, e
de vê-los a caminharem lado a lado, muito próximos um do outro.
Falavam num volume muito baixo, quase por sussurros. Rita tinha um
sorriso mais aberto do que o dele, mais transparente e generoso. O
sorriso do meu amigo poeta era mais contido. Calculo que o tentasse
dissimular para que o seu rosto não se transformasse rapidamente no
rosto frágil e embevecido de um apaixonado. Caminhavam ambos com os
rostos voltados para a frente. Evitavam olhar-se muitas vezes e,
quando isso acontecia, faziam-no rapidamente, quase a medo. Volta e
meia, desviavam-se o suficiente do seu rumo para um braço dela e um
braço dele pudessem roçar, ainda que ao de leve, um no outro.
Estavam envolvidos por uma espécie de sincronismo difícil de
descrever. Aparentemente, os seus corpos entendiam-se sem precisarem
olhar um para o outro.
Todos estes sinais
constituíram, para mim, uma confirmação suficiente. Já não me
restavam dúvidas. Havia qualquer coisa a acontecer ali.