11 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXVII)



O meu amigo poeta estava atrasado. Como já estava mais do que habituado aos seus atrasos, pedi um fino mal me sentei no restaurante. Bebi-o, enquanto observava o sítio. Estranho. O meu amigo poeta, com quem me habituei a partilhar refeições nos tascos mais reles, a convidar-me para um estabelecimento de aspecto caro. Mesa reservada, empregados de laçarote, muito direitos, em uniformes imaculados, com coletes em vermelho vivo, castiçais de aspecto dispendioso, mobília antiga em madeira escura, candeeiros elaborados. Iluminação impecável, muito agradável, gente de posses a comer a sua refeição. E eu ali no meio. O único a beber um fino.

Quando o fino acabou, acabei por pedir um porto seco. Não porque me apetecesse, mas porque pensei que aquela gente podia estranhar um gajo como eu ali sentado a beber finos em silêncio, sozinho numa mesa.

Estava eu a meio do meu porto seco quando uma rapariga entre os vinte e cinco e os trinta parou à frente da mesa a olhar para mim. Corpo elegante, a tender para o magro, dentro de um vestido castanho de tecido fino. Rosto bem desenhado, olhos rasgados por detrás dos óculos, pele morena. Trazia o cabelo apanhado numa espécie de novelo atrás da nuca, que deixava ver um pescoço longo, ombros arredondados. Sorriu um sorriso seco, inclinou-se e perguntou-me se era eu o amigo do pai dela. Respondi que sim, ela pediu-me desculpa pelo atraso e sentou-se imediatamente.

Só quando ela pediu um café e um porto ao empregado, os dois em conjunto e ainda antes de ter jantado, é que acreditei mesmo que estava perante a filha do meu amigo poeta. Pelos vistos, o hábito de abusar da ingestão de cafeína corria-lhes no sangue. E o hábito de a acompanhar com vinho do porto também. Reparei ainda nalgumas semelhanças entre pai e filha. Os gestos dela, ao limpar os óculos, eram exactamente iguais aos do meu amigo poeta. E os olhos. E algumas expressões faciais. Sim, as semelhanças estavam lá.

Seguiram-se alguns momentos algo desconfortáveis, se não mesmo humilhantes para a minha pessoa. Tentei meter conversa várias vezes, mas a rapariga respondia-me sempre ou com monossílabos, ou com onomatopeias, ou, pior ainda, com um sarcasmo dos mais ácidos de que já fui alvo.

Quanto ao meu amigo poeta, esse ainda havia de demorar.

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