15 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXVIII)



Passava já mais de uma hora da hora combinada quando o meu amigo poeta fez, finalmente, a sua aparição no restaurante.

Estava mais nervoso do que era habitual. Não conseguia manter o contacto ocular, o andar parecia vacilar um pouco e a respiração estava um pouco mais acelerada. Aproximou-se com uma expressão genuinamente aflita, cumprimentou-me primeiro e, depois, cumprimentou a filha com dois beijos, muito corado, enquanto se desfazia em desculpas.

“Estou desolado, a sério. Desolado”, dizia num ritmo aceleradíssimo o meu amigo poeta, gesticulando vigorosamente, “hoje foi mesmo um daqueles dias em que uma pessoa não consegue fazer nada à primeira, andei o tempo todo desorientado, peço desculpa… Primeiro não encontrava o raio das calças, depois distraí-me a escolher o casaco, enganei-me duas vezes no caminho… Enfim, uma tortura. Estou desolado.”
“Pois”, respondeu a filha num tom seco, “o que é mais curioso é que no ano passado se passou exactamente a mesma coisa.”

“Tens razão. Coisas que acontecem, enfim… Não sei que mais te diga…”

Eu sentia-me mesmo desconfortável metido naquela cena. A filha do meu amigo poeta estava fula, o meu amigo poeta continuava a pedir desculpas, ela ficava ainda mais fula, ele pedia mais desculpas… Enfim, espero que consigam perceber a coisa. De modo que decidi atalhar e sugeri que escolhêssemos a comida.

“Pode ser”, respondeu a filha do meu amigo poeta.

O meu amigo poeta suspirou de alívio e lá mandámos vir, finalmente, a comida.

O resto do jantar decorreu mais ou menos no mesmo registo. Um espectáculo deplorável. O meu amigo poeta sempre aflito com as bocas da filha, a filha do amigo poeta sempre com pouquíssima paciência para o que quer que o pai dissesse, e eu ali no meio, sem perceber muito bem que comportamento adoptar perante o estranho convívio em que me via envolvido. Tornou-se muito rapidamente nítido o motivo que levara o meu amigo poeta a convidar-me para participar naquele santo repasto: usava-me para elogiar a filha sempre que se lembrava de alguma coisa que pudesse servir de elogio. Um exemplo:

“Sabes que a Joana tem um talento inacreditável para a fotografia? Tens de ver um dia as fotografias que ela tira. São espectaculares...”

O problema maior tinha que ver com o facto de o meu amigo poeta não ser propriamente um perito no que toca a dar graxa a alguém. Pelo contrário, posso afirmar que era daquelas coisas em que ele se espalhava ao comprido, tal era a sua inaptidão para o exercício.

Fiquei a saber que a filha dele era jornalista, casada, que tinha uma filha que o meu amigo poeta quase nunca vira. Morava numa pequena cidade a oitenta e poucos quilómetros de distância. Viajava muitas vezes, mas quase sempre em trabalho, e via muito poucas vezes o pai. Estranho era o facto de não conhecer a mãe dela. Fazendo as contas, não era difícil verificar que já era amigo do poeta na altura em que ela fora concebida.

A rapariga despachou o jantar o mais que pôde. Comeu depressa e ainda eu ia a meio do meu digestivo quando ela propôs que fôssemos andando. O caminho de regresso era longo e tinha um dia muito ocupado no dia seguinte. O meu amigo poeta ainda tentou fazê-la ficar mais um pouco, mas sem sucesso. Estava mais que visto: para ela, aquilo era uma visita de cortesia, uma obrigação a cumprir e nada mais do que isso.

Assim, acabámos por pedir a conta cerca de uma hora e meia depois de o meu amigo poeta ter chegado. Este encarregou-se da despesa e encaminhámo-nos para o parque de estacionamento, onde me despedi dela. Ficou combinado que eu esperaria o meu amigo poeta no meu carro, para depois o deixar em casa. Foi o que fiz.

Entrei no carro e esperei por ele.

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