01 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXIV)



É-me difícil descrever o rosto do meu amigo poeta. 

Sim, algo tão central num ser humano como o seu próprio rosto. Há, primeiro, o esquecimento. Depois, o facto de a cara dele ser uma cara atipicamente normal. A cor da pele, o formato do rosto, o banalíssimo castanho dos olhos, as proporções da boca e do nariz, o tamanho das sobrancelhas, a densidade da barba, a angulosidade, a largura. Todos esses elementos do rosto eram muito normais. E o conjunto era, em si mesmo, tão normal quanto as partes que o compunham.

Contudo, e apesar de o seu corpo não ser também dotado de alguma qualidade particularmente distinta, o meu amigo poeta era das pessoas que mais facilmente seriam identificadas à distância. Eram a pose, os gestos, o ritmo e a velocidade dos movimentos, ora muito bruscos, ora muito lentos, que permitiam reconhecê-lo, mesmo no meio da multidão. Falo de coisas tão elementares como a direcção do olhar enquanto se mexe um café, a posição dos ombros e da cabeça durante um passeio, a forma como um sorriso se instala no rosto, o modo como um gesto de mão acompanha a intensidade de uma frase falada. Havia uma espécie de ausência, de alheamento, a temperar o comportamento corporal do meu amigo poeta. Algo que lhe afectava de igual forma a expressão facial, como que indicando que, apesar de o corpo dele estar ali, o seu pensamento estava noutro lado qualquer.

No entanto, mesmo que não ficasse tão afectado como os que o rodeavam pelo que estivesse a acontecer, ou a ser discutido, o meu amigo poeta não era gajo para perder o fio à meada de uma conversa, ou para deixar de argumentar durante uma discussão. Era mesmo capaz de se empolgar como qualquer outra pessoa e, apesar de ser reservado, não era frio. Mas percebia-se sempre, o corpo dele indiciava-o. O meu amigo poeta estava ali, no local onde o seu corpo se encontrava, mas sempre sem estar completamente lá.

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