01 outubro 2012

o meu amigo poeta (XXV)



Quando lhe contar que o meu amigo poeta era viciado em estímulos, o estimado leitor perguntar-me-á, porventura, se não o é toda a gente. Essa objecção hipotética, contudo, dever-se-ia a um único motivo: o caríssimo leitor nunca esteve frente a frente com o meu amigo poeta, coisa que o impede de conhecer a dimensão quase sobre-humana do seu vício.

Punha as mãos em todo e qualquer estímulo novo que se lhe apresentasse. Não era coisa que se relacionasse directamente com a sua vida, com as suas necessidades quotidianas. O meu amigo poeta não precisava de estímulos senão para escrever. Mas, depois de tanto tempo, de tantos anos a escrever num ritmo tão alucinante e furioso, precisava de escrever como quem precisa de oxigénio: não conseguia viver sem aquilo, precisava de escrever para viver. Para aguentar a vida. Em certa medida, aquilo era o sentido da vida do meu amigo poeta, talvez em virtude do modo como via a própria vida: um processo simultaneamente terrível e risível. Encarava, portanto, a sua existência como algo que se deve sofrer e de que se deve rir.

“É uma espécie de filosofia dos duros adaptada a gajos com pouco músculo e pouco desejo de matar”, disse-me ele mais do que uma vez. Uma vez acrescentou ainda: “é uma questão estilística. Um gajo que se ri da própria dor tem pinta. Tem estilo. De uma forma meio bera, mas tem estilo. E isso, num poema, por exemplo, é melhor do que uma lamechice qualquer. Na vida, ainda mais. Ninguém tem paciência para choraminguices. E a vida deve ser escrita assim. Sem choraminguices e com estilo.”

Escrevia, portanto, a vida tal como a via: um processo simultaneamente terrível e risível. E não via qualquer incompatibilidade nisso. Sofrer e rir eram, para ele, duas faces da mesma moeda, dois momentos do mesmo processo. Aos momentos felizes, ou pacíficos, em que não se ri nem se chora, mas se contempla, via-os ele como intervalos do processo, uma espécie de pausa para café que um gajo tira da própria vida. “Vou sair da vida para ir ao café, ou para ir olhar para a relva, ou para ir à praia ver as gajas em biquini”, dizia ele.

O resto era escrever para viver e viver para escrever. De tal forma que o meu amigo poeta tinha um verdadeiro terror perante a possibilidade de não conseguir escrever, de interromper a corrente durante demasiado tempo. Era, para ele, um medo maior que o medo da morte. Era o medo de se transformar numa espécie de vegetal: um gajo que não sofre e não se ri. Uma espécie de Buda plantado debaixo de uma árvore, a engordar e a ganhar bolor enquanto dá conselhos aos outros e lhes explica o que é a vida e como se deve vivê-la. Talvez fosse esse o impulso que levava o meu amigo poeta a escrever. A páginas tantas, chega ele mesmo a escrever que “…quero ser um/ /anti-buda…”, mais ou menos a meio do seu primeiro livro. Agora que penso nisso, talvez seja mesmo no centro matemático do livro e a coisa não tenha sucedido por acaso.

Portanto, podemos concluir que o meu amigo poeta tinha medo de perder a intensidade da vida: deixar de sofrer, deixar de rir, deixar de escrever. De perder uma hipótese qualquer de experimentar qualquer coisa. De não ter mais que contar. De não ter como contar algo a alguém por lhe faltar o ter experimentado algo de semelhante.

Creio que era por isso que se metia nas experiências mais variadas, bizarras e coerentes entre si. Tudo era fruto do desejo de oscilar entre dois pólos, furiosamente: rir e sofrer; sofrer e rir. E tinha tenacidade, o meu amigo poeta. Era decidido, não se ficava pelas intenções. Tanto o queria, que acabava por se ver metido, pelo menos uma vez por semana, num episódio memorável por um outro motivo. Graças a esta particularidade, creio que a sua vida seria impossível de narrar senão por intermédio de fascículos, de episódios.

Vendo as coisas por outro lado, porém, ainda que talvez de um modo mais cínico, talvez o meu amigo poeta se metesse em cenas grotescas com tal frequência apenas devido ao facto de ele mesmo ser tão grotesco como as embrulhadas em que se metia.

Enfim, mais uma das teorias que tenho sobre ele. Como muitas outras, uma teoria por confirmar.

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