Quando lhe contar que o meu amigo poeta era
viciado em estímulos, o estimado leitor perguntar-me-á, porventura, se não o é
toda a gente. Essa objecção hipotética, contudo, dever-se-ia a um único motivo: o caríssimo leitor nunca esteve frente a frente com o meu amigo poeta, coisa que o impede de conhecer a dimensão quase sobre-humana do seu vício.
Punha as mãos em todo e qualquer estímulo novo
que se lhe apresentasse. Não era coisa que se relacionasse directamente com a
sua vida, com as suas necessidades quotidianas. O meu amigo poeta não precisava
de estímulos senão para escrever. Mas, depois de tanto tempo, de tantos anos a
escrever num ritmo tão alucinante e furioso, precisava de escrever como quem
precisa de oxigénio: não conseguia viver sem aquilo, precisava de escrever para
viver. Para aguentar a vida. Em certa medida, aquilo era o sentido da vida do
meu amigo poeta, talvez em virtude do modo como via a própria vida: um processo
simultaneamente terrível e risível. Encarava, portanto, a sua existência como
algo que se deve sofrer e de que se deve rir.
“É uma espécie de filosofia dos duros adaptada
a gajos com pouco músculo e pouco desejo de matar”, disse-me ele mais do que
uma vez. Uma vez acrescentou ainda: “é uma questão estilística. Um gajo que se
ri da própria dor tem pinta. Tem estilo. De uma forma meio bera, mas tem
estilo. E isso, num poema, por exemplo, é melhor do que uma lamechice qualquer.
Na vida, ainda mais. Ninguém tem paciência para choraminguices. E a vida deve
ser escrita assim. Sem choraminguices e com estilo.”
Escrevia, portanto, a vida tal como a via: um
processo simultaneamente terrível e risível. E não via qualquer
incompatibilidade nisso. Sofrer e rir eram, para ele, duas faces da mesma
moeda, dois momentos do mesmo processo. Aos momentos felizes, ou pacíficos, em
que não se ri nem se chora, mas se contempla, via-os ele como intervalos do
processo, uma espécie de pausa para café que um gajo tira da própria vida. “Vou
sair da vida para ir ao café, ou para ir olhar para a relva, ou para ir à praia
ver as gajas em biquini”, dizia ele.
O resto era escrever para viver e viver para
escrever. De tal forma que o meu amigo poeta tinha um verdadeiro terror perante
a possibilidade de não conseguir escrever, de interromper a corrente durante
demasiado tempo. Era, para ele, um medo maior que o medo da morte. Era o medo
de se transformar numa espécie de vegetal: um gajo que não sofre e não se ri.
Uma espécie de Buda plantado debaixo de uma árvore, a engordar e a ganhar bolor
enquanto dá conselhos aos outros e lhes explica o que é a vida e como se deve
vivê-la. Talvez fosse esse o impulso que levava o meu amigo poeta a escrever. A
páginas tantas, chega ele mesmo a escrever que “…quero ser um/ /anti-buda…”,
mais ou menos a meio do seu primeiro livro. Agora que penso nisso, talvez seja
mesmo no centro matemático do livro e a coisa não tenha sucedido por acaso.
Portanto, podemos concluir que o meu amigo
poeta tinha medo de perder a intensidade da vida: deixar de sofrer, deixar de
rir, deixar de escrever. De perder uma hipótese qualquer de experimentar
qualquer coisa. De não ter mais que contar. De não ter como contar algo a
alguém por lhe faltar o ter experimentado algo de semelhante.
Creio que era por isso que se metia nas
experiências mais variadas, bizarras e coerentes entre si. Tudo era fruto do
desejo de oscilar entre dois pólos, furiosamente: rir e sofrer; sofrer e rir. E
tinha tenacidade, o meu amigo poeta. Era decidido, não se ficava pelas
intenções. Tanto o queria, que acabava por se ver metido, pelo menos uma vez
por semana, num episódio memorável por um outro motivo. Graças a esta
particularidade, creio que a sua vida seria impossível de narrar senão por
intermédio de fascículos, de episódios.
Vendo as coisas por outro lado, porém, ainda
que talvez de um modo mais cínico, talvez o meu amigo poeta se metesse em cenas
grotescas com tal frequência apenas devido ao facto de ele mesmo ser tão
grotesco como as embrulhadas em que se metia.
Enfim, mais uma das teorias que tenho sobre ele.
Como muitas outras, uma teoria por confirmar.
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