20 setembro 2012

o meu amigo poeta (XX)



Certa vez, decidiram agraciar o meu amigo poeta com uma distinção da treta. Um desses embustes de que os políticos se servem para fingir que se incomodam com o estado das artes nacionais, quando, na verdade, só se preocupam com os efeitos que o acto de entregar prémios ou gabar a arte de alguém terá nas urnas. Queriam torná-lo comendador da ordem do Infante, ou qualquer merda parecida, devido aos seus méritos literários, inestimável contributo para as letras nacionais e mundiais e outras coisas do género.

Ser-lhe-ia concedida a honra em questão pelo Presidente da República em pessoa (que, provavelmente, nunca leu um livro que não fosse necessário para fazer uma cadeira de liceu ou faculdade, se tanto), em cerimónia pomposa. E o meu amigo poeta aceitou, mais por causa da cerimónia do que pela graça em questão. Nunca foi rico e, por vezes, chegava a passar fome. Assim, viu na imbecil festividade uma óptima oportunidade para encher o bandulho com comida de rico. Havia também uma certa vaidade entre os motivos para marcar presença, mas essa, o meu amigo poeta nunca havia de admitir. O que, aqui entre nós, só é prova ainda mais esclarecedora da dimensão do seu ego.

Quis assim o destino que, num solarengo domingo de Verão, se deslocasse o meu amigo poeta à capital para que se consumasse o acto. Vestiu o seu fato menos estragado, meteu-se no autocarro e lá chegou ao palacete onde a coisa se desenrolaria. Contou-me que comeu por três ou quatro. Provou as bebidas todas. “Vinhos bastante bons, licores assim assim”, disse ele em jeito de apreciação quando me fez o relato. Posou para as fotografias. Falou com as pessoas e tudo. Civilizadamente, ou seja, mentindo muito e sorrindo mais do que de facto desejaria, sempre sem chegar a elevar o tom de voz.

E lá chegou o momento da condecoração. O meu amigo poeta esperou pacientemente, como se estivesse na bicha do supermercado, que os restantes agraciáveis fossem agraciados. Estava um calor dos diabos e, ainda para mais, com os copos que bebera, o meu amigo poeta fartou-se de suar. Ainda assim, resistiu como um herói e não despiu o blazer, até que chegou o momento em que o Presidente lhe colocaria a medalha ao peito e apertaria de seguida a sua mão, trocando com ele algumas palavras de circunstância. Contudo, Sua Excelência não tinha noção de uma coisa: é que o meu amigo nunca foi muito de circunstâncias. Sabia manter a compostura, mas só se lhe interessasse mantê-la. De modo que, quando o Presidente lhe disse: “é um prazer imenso conceder esta honra a um dos melhores poetas da actualidade”, o meu amigo não foi em modas. Falou-lhe no tom mais afável deste mundo, com um largo sorriso, mantendo todo o decoro exigido pela circunstância.

“Queria-lhe dizer uma coisa”, disse o meu amigo poeta enquanto lhe apertava a mão.

“Ai sim? Diga lá!”

“Um poeta como eu reconhece o cheiro de uma mentira a quilómetros de distância. Ao seu redor, o fedor é tão forte que era capaz de fazer a pior das lixeiras municipais assemelhar-se a uma plantação de rosas.”

Cumprida que estava a cerimónia, o meu amigo poeta fez a viagem de regresso. Ligaram-lhe da editora no dia seguinte.

“Procure uma editora nova. Os seus livros vão sair de circulação. Ordens superiores, temos muita pena”, disse uma voz dentro do telefone. E assim foi. De modo que hoje, quando o meu amigo poeta tem sorte, fazem-se edições de cento e cinquenta exemplares das suas obras.

Mas a injustiça não foi assim tão grande. Ainda hoje, na mesinha de cabeceira do meu amigo poeta, se pode ver uma fotografia em que o Presidente, com um sorrisinho muito amarelo, lhe aperta a mão.

“Sempre que acordo indisposto, olho para aquela fotografia e o dia deixa de me parecer uma tortura”, diz frequentemente o meu amigo poeta, de olhos brilhantes como os de uma criança, “mas ando com ideias de mudá-la para a casa de banho, para a pendurar mesmo de frente para a sanita. Assim, quando me sentar, já não há hipótese de me esquecer do que vim fazer ali.”

Sem comentários:

Enviar um comentário