17 setembro 2012

o meu amigo poeta (XVIII)



A certa altura, o meu amigo poeta andou, durante uns tempos, mais calado e fugidio.
Passava mais tempo em casa e, nas poucas ocasiões em que comparecia nas nossas reuniões de café, ficava mais calado do que era normal.

Um dia explicou-se: tinha tido uma ideia para uma peça de teatro.

“É sobre uma mulher que se apaixona perdidamente por um homem. São ambos jovens e aquilo que a mulher ama naquele homem são duas coisas. A mulher, claro, não tem consciência disso. Ama nele a rebeldia, a irreverência, uma certa violência em termos de temperamento. Mas aquilo que ama ainda mais é a ideia de ser capaz de o mudar, de o acalmar, de o tornar mais dócil. Acabam por juntar-se, apesar de ele, inicialmente, resistir um pouco. Com o passar do tempo, sem que se aperceba disso, ela começa a tentar mudá-lo. Quer uma vida estável, segurança, um futuro. O processo, claro, é violentíssimo. Ele resiste com todas as forças. É precisamente nesse choque que reside o conflito central da coisa, que se alastrará aos pormenores mais insignificantes do quotidiano do casal. Lavar a louça, decidir que quadro colocar numa parede, todas as coisas, por mais minúsculas, serviram de pretexto para que esse conflito venha à tona.”

“Parece interessante”, comentou alguém.

“Nem por isso”, respondeu o meu amigo poeta. “A parte interessante é o desenlace e não a batalha. No fim da peça, ela deixa-o. Precisamente porque o conseguiu mudar. Já não consegue sentir nada senão desprezo por aquela espécie de marido amestrado. Troca-o por outro gajo. Um gajo novo. Um rebelde.”

Durante semanas, o meu amigo poeta só falou daquilo. Andava obcecado. Segundo o que nos contava, o a produção da coisa progredia num ritmo avassalador. Até ele estava incrédulo com a velocidade com que a sua caneta enchia páginas e páginas de diálogos.

Depois, progressivamente, começou a falar menos da peça. Começámos a estranhar. Houve alguém que, finalmente, lhe perguntou como andava a peça de teatro, apesar de não estar verdadeiramente interessado naquilo. O meu amigo poeta franziu o nariz, olhou para o lado e respondeu:

“Voltei aos poemas.”

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