13 setembro 2012

o meu amigo poeta (XV)



Por vezes, o meu amigo poeta sentia-se preso. O que nem é nada de particularmente interessante, bem vistas as coisas. Já a maneira como enfrentava a situação, aquilo a que chamava o ‘ataque de condição citadina’, ganhava, por vezes, contornos bastante originais.

Entre aqueles que privavam com o meu amigo poeta, um desses ataques de condição citadina converteu-se numa espécie de mito.

Deve ter sido um ataque mais intenso do que o habitual. O meu amigo poeta tivera uma semana terrível. Desilusões laborais, que significavam que a dada altura do mês teria de se contentar com uma dieta exclusiva de ovos cozidos ao almoço e ao jantar, desilusões amorosas, que significavam que, mais uma vez, teria de tratar das suas necessidades dando à mãozinha, desilusões artísticas, neste caso trinta e dois poemas que acabaram acidentalmente dentro da sua máquina de lavar e a desilusão física de andar outra vez com problemas no fígado.

Contou ele que o ponto de não retorno ocorreu no exacto momento em que a ponta do seu lápis se partiu a meio de um poema. Disse que ficou a olhar para aquilo por momentos, sem reacção, completamente paralisado. “Mas, mal percebi o que acabara de se passar, só conseguia pensar em arrancar os cabelos, morder os meus próprios dentes ou dar cabeçadas na parede. Olhei ao meu redor e o quarto parecia ainda mais desesperadamente pequeno do que antes”, continuou ele. A seguir, contou que desatou aos berros.

“MERDA! MERDA! MERDA!”, gritava ele a plenos pulmões, mesmo quando se pôs a caminhar como um louco pela casa, a todo o gás. Pegou nas chaves, abriu a porta e saiu, batendo-a com estrondo contra a parede. “MERDA! MERDA!”, continuava ele. A velha do terceiro andar veio às escadas e tudo, para mandar vir com o meu amigo poeta, mas era como se ele nem sequer a ouvisse. Lá parou de berrar, mas não disse mais nada enquanto desceu, em passo de corrida, as escadas do prédio.

Começou a descer ruas. A sua raiva guiava-o inexplicavelmente para o rio. E o meu amigo poeta seguiu-a, sem pensar em mais nada, de modo que, das doze vezes que atravessou a estrada, nem sequer se deu ao trabalho de ver se vinham carros na sua direcção. Limitou-se a caminhar. Uma espécie de Moisés a dividir o tráfego ao meio, por entre buzinadelas, insultos, chiares de pneus, uma figura para quem parar, nem que fosse por um segundo, não era, simplesmente, uma opção.

Pode-se dizer que teve muita sorte, porque conseguiu entrar na zona ribeirinha sem ter sido atropelado e sem que ninguém lhe partisse os dentes. E lá continuou, guiado por uma espécie de voz interior incendiada de raiva e autoridade, até que se viu perante o rio. Trepou o muro e olhou para aquilo. Sentia-se desorientado. Tinha de fazer alguma coisa. Tinha de fazer alguma coisa.

Acabou por baixar as calças, ali de pé, perante os olhares mais escandalizados, virar-se de costas e, com uma expressão furiosa, enquanto dizia, num tom de voz sofrido, “tu vais já ver, tu vais já ver”, defecar ali mesmo. Quando ouviu o cagalhoto a mergulhar nas águas do rio, virou-se para trás e pôs-se a andar para casa. Disse que era como se lhe tivessem tirado um peso de cima.

“Quando um gajo está mal e não encontra uma solução com um efeito permanente para o seu problema, chega lá por outro lado. Muito simplesmente, alivia-se”, rematou ele ao explicar aquilo.

O meu amigo poeta pediu o café, que ainda não tinha bebido, e o porto com que gostava de o acompanhar. Ninguém o contradisse, nem lhe pediu mais explicações sobre o assunto. Talvez porque, àquela mesa, só se encontravam exemplares dessa espécie que a sociedade gosta de catalogar como doidos. Talvez por aquela ser uma mesa ao redor da qual estavam sentadas pessoas mais tolerantes em relação ao capricho alheio do que um ser humano comum.

Ainda assim, nenhum de nós esqueceu aquele relato.

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