Dou-me agora conta de que ainda não descrevi
fisicamente o meu amigo poeta. A verdade é que, tal como sucede por vezes
quando deixamos de ver gente com quem passámos muito tempo, a memória que tenho
da sua aparência se cristalizou em duas ou três imagens muito vagas.
Possuo, contudo, uma fotografia que é capaz de
servir para o efeito.
O meu amigo poeta está no sofá, deitado de
lado, com um braço ao dependuro. Tem os olhos fechados, a boca aberta e os
cabelos negros em desalinho. À primeira vista, dir-se-ia que o que ali está é
um cadáver e não uma pessoa. Apesar do enquadramento demasiado oblíquo,
consegue discernir-se a sua compleição: é muito magro, muito pequeno. O braço é
quase esquelético. A barba está por fazer há três ou quatro dias. É espessa,
oculta-lhe as faces e a boca.
Tem a camisa aberta e engelhada, a camisola
interior cheia de nódoas. Sobre a barriga, uma lata de cerveja caiu,
vertendo-se o seu conteúdo sobre uma pilha de papéis preenchidos por uma letra
muito miúda, em linhas muito direitas. Está de calças de ganga velhas, o tecido
já claro, gasto, fino. Tem as pernas cruzadas sobre o sofá e, ao fundo, a
janela aberta deixa que a luz do final da tarde invada o espaço.
Ao lado do sofá, no chão, há uma pilha de
papéis com meio palmo de altura, muito direita. Como uma pequena torre de
papel, uma espécie de edifício dentro do edifício. À volta das folhas, três ou
quatros latas de cerveja, pousadas ao acaso.
No meio de todo este caos, o meu amigo poeta
dorme. Apesar de estar todo torcido, encharcado e de todo o lixo espalhado ao
seu redor, o seu rosto apresenta a expressão mais serena deste mundo.
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