10 setembro 2012

o meu amigo poeta (XIV)



Dou-me agora conta de que ainda não descrevi fisicamente o meu amigo poeta. A verdade é que, tal como sucede por vezes quando deixamos de ver gente com quem passámos muito tempo, a memória que tenho da sua aparência se cristalizou em duas ou três imagens muito vagas.

Possuo, contudo, uma fotografia que é capaz de servir para o efeito.

O meu amigo poeta está no sofá, deitado de lado, com um braço ao dependuro. Tem os olhos fechados, a boca aberta e os cabelos negros em desalinho. À primeira vista, dir-se-ia que o que ali está é um cadáver e não uma pessoa. Apesar do enquadramento demasiado oblíquo, consegue discernir-se a sua compleição: é muito magro, muito pequeno. O braço é quase esquelético. A barba está por fazer há três ou quatro dias. É espessa, oculta-lhe as faces e a boca.

Tem a camisa aberta e engelhada, a camisola interior cheia de nódoas. Sobre a barriga, uma lata de cerveja caiu, vertendo-se o seu conteúdo sobre uma pilha de papéis preenchidos por uma letra muito miúda, em linhas muito direitas. Está de calças de ganga velhas, o tecido já claro, gasto, fino. Tem as pernas cruzadas sobre o sofá e, ao fundo, a janela aberta deixa que a luz do final da tarde invada o espaço.

Ao lado do sofá, no chão, há uma pilha de papéis com meio palmo de altura, muito direita. Como uma pequena torre de papel, uma espécie de edifício dentro do edifício. À volta das folhas, três ou quatros latas de cerveja, pousadas ao acaso.

No meio de todo este caos, o meu amigo poeta dorme. Apesar de estar todo torcido, encharcado e de todo o lixo espalhado ao seu redor, o seu rosto apresenta a expressão mais serena deste mundo.

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