06 setembro 2012

o meu amigo poeta (XIII)


Havia pouca coisa que o meu amigo poeta detestasse mais do que apresentações de livros. Era o tipo de evento que o deixava nervoso, despertando nele uma curiosa sensação, um misto de medo, vergonha e raiva.

Muitos dos seus pares, sendo que por alguns destes o meu amigo poeta nutria sentimentos de verdadeira afeição e admiração, muitas vezes mútuos, chegavam mesmo a ressentir-se disso. Era comum que o meu amigo poeta faltasse ao lançamento dos seus livros. Houve até quem tivesse deixado de lhe falar por causa disso.

Contudo, na verdade, não havia muito a fazer. Para ele, era uma coisa visceral. Achava que, de uma maneira ou de outra, a apresentação de um livro, enquanto evento público e oficial, acabaria sempre por tornar-se num espectáculo de circo. Um espectáculo de circo útil, em certa medida, mas ainda assim um espectáculo de circo.
O meu amigo poeta fervia facilmente quando era confrontado com a vaidade, com o aproveitar de um palco com o único propósito de massajar o ego, com a hipocrisia de se que dizer que se amam as letras e as artes, quando o que se ama verdadeiramente é a oportunidade de projectar uma imagem de irreverência, de inteligência, de interlocutor privilegiado com os livros, essa coisa que muitas vezes passa por ser sagrada, sem o ser realmente.

“Não sei”, disse-me ele uma vez, “chega-se ali e parece que toda a gente está a tentar ser como uma bela estátua que se mexe. As poses são trabalhadas, falseadas. Como se seres humanos se tenham produzido para que possam ser contemplados, admirados e invejados. Há mexericos, há maledicência, há coscuvilhice. Há sempre, por ali, um monte de mentiras. Um espectáculo mesquinho e desonesto, em que o livro é o menos importante dos intervenientes. Passa a ser apenas um pretexto.”

Concluiu, depois: “Por outro lado, toda a gente espera que te comportas da mesma maneira. E eu, que não consigo transformar-me em estátua, sinto-me como se estivesse nu no meio de uma data de gente vestida. É horrível. Ao mesmo tempo, apetece-me pôr-me aos berros com toda a gente que por ali anda e desaparecer do meio daquela merda toda, só para que ninguém me veja.”

Fez uma pausa para limpar os óculos. Olhou para longe.

“Quanto a apresentar os meus, também não gosto. É como se toda a gente fosse um juiz à espera que eu me justifique. É absurdo. Para mim, a escrita é sobretudo um exercício de liberdade, mas nesse contexto, sou sempre assaltado por uma certa cagufa. Tenho medo que me descubram a careca, que percebam que sou uma fraude.”

Não me esqueci destas palavras. Tenho a impressão de que era precisamente este o tipo de coisa que o meu amigo poeta só partilhava comigo e que era esta faceta da nossa relação a causa da estima que ele sempre demonstrou ter para comigo. Talvez por isso, tenha sido eu o único a compreender o que se passou realmente num fatídico domingo de Verão, numa tarde quente.

Era a apresentação do livro do meu amigo poeta. A sala encheu-se de gente. Gente que, na sua maior parte, comprou mesmo o livro. Gente paciente que ficou ali à espera durante horas. O meu amigo poeta foi o único que não apareceu. Faltou ao lançamento do seu próprio livro.

Houve quem tivesse pensado que faltou por distracção: “Está-se a cagar tão d´alto para isto que nem se lembrou.” Houve quem pensasse que agiu por desfaçatez, por provocação pura e dura: “Aposto que está em casa, refastelado a beber uma cerveja e a rir-se às gargalhadas, a imaginar-nos aqui plantados com caras de parvo, à espera do génio”. Já eu, limitei-me a recordar as palavras do meu amigo poeta e a interpretar o caso através delas, enquanto olhava a cadeira que lhe havia sido destinada, vazia: “Tenho medo que me descubram a careca”.

A verdade é que, depois disto, nenhuma outra apresentação de um livro do meu amigo poeta passou de um fracasso em termos da quantidade de gente presente. Já não ia quase ninguém aos seus lançamentos.

Bem vistas as coisas, talvez o meu amigo poeta preferisse que as coisas se passassem assim.

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