Havia pouca coisa que o meu amigo poeta
detestasse mais do que apresentações de livros. Era o tipo de evento que o
deixava nervoso, despertando nele uma curiosa sensação, um misto de medo,
vergonha e raiva.
Muitos dos seus pares, sendo que por alguns
destes o meu amigo poeta nutria sentimentos de verdadeira afeição e admiração,
muitas vezes mútuos, chegavam mesmo a ressentir-se disso. Era comum que o meu
amigo poeta faltasse ao lançamento dos seus livros. Houve até quem tivesse
deixado de lhe falar por causa disso.
Contudo, na verdade, não havia muito a fazer.
Para ele, era uma coisa visceral. Achava que, de uma maneira ou de outra, a
apresentação de um livro, enquanto evento público e oficial, acabaria sempre
por tornar-se num espectáculo de circo. Um espectáculo de circo útil, em certa
medida, mas ainda assim um espectáculo de circo.
O meu amigo poeta fervia facilmente quando era
confrontado com a vaidade, com o aproveitar de um palco com o único propósito
de massajar o ego, com a hipocrisia de se que dizer que se amam as letras e as
artes, quando o que se ama verdadeiramente é a oportunidade de projectar uma
imagem de irreverência, de inteligência, de interlocutor privilegiado com os
livros, essa coisa que muitas vezes passa por ser sagrada, sem o ser realmente.
“Não sei”, disse-me ele uma vez, “chega-se ali
e parece que toda a gente está a tentar ser como uma bela estátua que se mexe.
As poses são trabalhadas, falseadas. Como se seres humanos se tenham produzido
para que possam ser contemplados, admirados e invejados. Há mexericos, há
maledicência, há coscuvilhice. Há sempre, por ali, um monte de mentiras. Um
espectáculo mesquinho e desonesto, em que o livro é o menos importante dos
intervenientes. Passa a ser apenas um pretexto.”
Concluiu, depois: “Por outro lado, toda a
gente espera que te comportas da mesma maneira. E eu, que não consigo
transformar-me em estátua, sinto-me como se estivesse nu no meio de uma data de
gente vestida. É horrível. Ao mesmo tempo, apetece-me pôr-me aos berros com
toda a gente que por ali anda e desaparecer do meio daquela merda toda, só para
que ninguém me veja.”
Fez uma pausa para limpar os óculos. Olhou
para longe.
“Quanto a apresentar os meus, também não
gosto. É como se toda a gente fosse um juiz à espera que eu me justifique. É
absurdo. Para mim, a escrita é sobretudo um exercício de liberdade, mas nesse
contexto, sou sempre assaltado por uma certa cagufa. Tenho medo que me
descubram a careca, que percebam que sou uma fraude.”
Não me esqueci destas palavras. Tenho a
impressão de que era precisamente este o tipo de coisa que o meu amigo poeta só
partilhava comigo e que era esta faceta da nossa relação a causa da estima que
ele sempre demonstrou ter para comigo. Talvez por isso, tenha sido eu o único a
compreender o que se passou realmente num fatídico domingo de Verão, numa tarde
quente.
Era a apresentação do livro do meu amigo
poeta. A sala encheu-se de gente. Gente que, na sua maior parte, comprou mesmo
o livro. Gente paciente que ficou ali à espera durante horas. O meu amigo poeta
foi o único que não apareceu. Faltou ao lançamento do seu próprio livro.
Houve quem tivesse pensado que faltou por
distracção: “Está-se a cagar tão d´alto para isto que nem se lembrou.” Houve
quem pensasse que agiu por desfaçatez, por provocação pura e dura: “Aposto que
está em casa, refastelado a beber uma cerveja e a rir-se às gargalhadas, a
imaginar-nos aqui plantados com caras de parvo, à espera do génio”. Já eu,
limitei-me a recordar as palavras do meu amigo poeta e a interpretar o caso
através delas, enquanto olhava a cadeira que lhe havia sido destinada, vazia:
“Tenho medo que me descubram a careca”.
A verdade é que, depois disto, nenhuma outra
apresentação de um livro do meu amigo poeta passou de um fracasso em termos da
quantidade de gente presente. Já não ia quase ninguém aos seus lançamentos.
Bem vistas as coisas, talvez o meu amigo poeta
preferisse que as coisas se passassem assim.
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