03 setembro 2012

o meu amigo poeta (XII)


Quando o meu amigo poeta tinha sede, aquela sede da alma que leva os homens a beber demais (nesses momentos, para ele, o conceito de beber demais deixava de fazer sentido), gostava de ir aos tascos onde se canta o fado. Contudo, não era a música que o atraía.

Desenvolvera um esquema eficaz para que a cardina lhe saísse mais barata: sequências de finos intercalados com penaltis de bagaço. A cerveja vinha sempre morta e o bagaço era do mais vil, mas desde que a coisa funcionasse, estava tudo bem para o meu amigo poeta. Por cada três finos, lá emborcava um bagaço. Repetia a sequência três ou quatro vezes e estava pronto para a festa.

Sempre que o fadista pedia silêncio, desatava a rir às gargalhadas. E ele, que até é habitualmente mais do que comedido no que toca a ruídos, ria nesses momentos um riso histérico, ensandecido, brutal e cavernoso. Era capaz de interromper a mesma música duas ou três vezes, ou, se a coisa corresse mesmo bem, adiar o seu início por alguns minutos. E repetia e voltava a repetir a gracinha, como uma criança que quer a todo o custo ser o centro das atenções, até que os fadistas, de ânimos tomados de uma soberba raiva, ampliada pelos copos de que também eles haviam abusado, se viravam a ele. Faziam peito, erguiam o rosto, arregaçavam as mangas e, de rostos animados por uma vermelhidão incrível, acabavam por convidar o meu amigo poeta a resolver o assunto lá fora, que é o que fazem os cavalheiros.

Conseguia enfiar um ou dois socos nos seus adversários, mas os seus golpes não faziam mossa. E fartava-se de levar. De modo que terminava sempre estendido num canto sujo e escuro, a tentar perceber se lhe faltava algum dente. Ajudei-o a reerguer-se em muitas ocasiões deste género. De seguida, arrastava-o para o carro e deixava-o em casa. Mas, à medida que a cena se ia repetindo, também eu me cansei daquele capricho do meu amigo poeta. Estávamos dentro do carro e eu, já farto daquele seu capricho inexplicável, perguntei-lhe por que raio cismava ele em continuar a fazer aquilo, se já tinha a certeza de que ia levar na boca.

O meu amigo poeta riu-se.

“Silêncio, que se vai cantar o fado?” respondia ele, “mas quem é que eles pensam que são?”

Era assim o meu amigo poeta. Nunca gostou muito de que o mandassem calar.

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