Quando o meu amigo poeta tinha sede, aquela
sede da alma que leva os homens a beber demais (nesses momentos, para ele, o
conceito de beber demais deixava de fazer sentido), gostava de ir aos tascos
onde se canta o fado. Contudo, não era a música que o atraía.
Desenvolvera um esquema eficaz para que a
cardina lhe saísse mais barata: sequências de finos intercalados com penaltis
de bagaço. A cerveja vinha sempre morta e o bagaço era do mais vil, mas desde
que a coisa funcionasse, estava tudo bem para o meu amigo poeta. Por cada três
finos, lá emborcava um bagaço. Repetia a sequência três ou quatro vezes e
estava pronto para a festa.
Sempre que o fadista pedia silêncio, desatava
a rir às gargalhadas. E ele, que até é habitualmente mais do que comedido no
que toca a ruídos, ria nesses momentos um riso histérico, ensandecido, brutal e
cavernoso. Era capaz de interromper a mesma música duas ou três vezes, ou, se a
coisa corresse mesmo bem, adiar o seu início por alguns minutos. E repetia e
voltava a repetir a gracinha, como uma criança que quer a todo o custo ser o
centro das atenções, até que os fadistas, de ânimos tomados de uma soberba
raiva, ampliada pelos copos de que também eles haviam abusado, se viravam a
ele. Faziam peito, erguiam o rosto, arregaçavam as mangas e, de rostos animados
por uma vermelhidão incrível, acabavam por convidar o meu amigo poeta a
resolver o assunto lá fora, que é o que fazem os cavalheiros.
Conseguia enfiar um ou dois socos nos seus
adversários, mas os seus golpes não faziam mossa. E fartava-se de levar. De
modo que terminava sempre estendido num canto sujo e escuro, a tentar perceber
se lhe faltava algum dente. Ajudei-o a reerguer-se em muitas ocasiões deste
género. De seguida, arrastava-o para o carro e deixava-o em casa. Mas, à medida
que a cena se ia repetindo, também eu me cansei daquele capricho do meu amigo
poeta. Estávamos dentro do carro e eu, já farto daquele seu capricho
inexplicável, perguntei-lhe por que raio cismava ele em continuar a fazer
aquilo, se já tinha a certeza de que ia levar na boca.
O meu amigo poeta riu-se.
“Silêncio, que se vai cantar o fado?”
respondia ele, “mas quem é que eles pensam que são?”
Era assim o meu amigo poeta. Nunca gostou
muito de que o mandassem calar.
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