03 setembro 2012

o meu amigo poeta (XI)


Decidiu certo dia o meu amigo poeta, numa altura em que a sua vida profissional lhe permitia viver menos aflito com as suas economias, que ia mudar-se.

Talvez dizer que a sua vida profissional corria de feição seja pouco acertado. Na verdade, duas senhoras abastadas decidiram patrocinar a criação do meu amigo poeta. Os motivos, como será fácil adivinhar, não eram os mais nobres. Gostavam de ostentar aquilo como uma espécie de título nobiliárquico. A partir daquele momento, eram mecenas. Coisa chique, portanto, que compensava sem dificuldade a pequena esmola que dispensavam todos os meses ao meu amigo poeta.

Perdão. Divago. Regressemos ao assunto.

O meu amigo poeta, vendo-se assim numa situação de inesperada abastança, decidiu que era altura de mudar o seu domicílio.

Queria uma casa maior numa rua mais calma. Queria morar num edifício cujas paredes não estivessem permanentemente a descascar-se. Queria uma casa arejada, um sítio onde, apesar dos seus deploráveis hábitos de higiene domiciliária, o ar não ganhasse aquela desconfortável densidade característica do excesso de pó em suspensão.

Apesar de nunca o ter admitido, creio que um certo medo se apossara dele. Talvez medo seja pouco. Talvez seja mais exacto dizer que andava apavorado. Lembro-me de o ver tornar-se, nessa altura, mais sério e reservado do que o habitual. Nessa semana, ocorreram duas rixas na sua rua. Uma delas terminara à navalhada. Portanto, apoquentava-o a perspectiva de levar também uma naifada no bucho.

Acabou mesmo por mudar-se para um apartamento mais caro, numa rua mais tranquila de uma zona mais segura. Cheguei a visitá-lo para ver a casa. Mandou vir dois sofás. Trocou uma das suas mesas decrépitas por uma novinha em folha. O seu novo domicílio era espaçoso, arejado, bem iluminado. Os acabamentos eram impecáveis. Era uma casa de fazer inveja a muita gente.

Mas o meu amigo poeta não aguentou.

Aquilo não era para ele. Não conseguiu escrever uma única linha na sua casa nova. Papéis amarrotados com frases a meio amontoavam-se pelos cantos. Sentia falta do escuro, do sujo, da velha varanda que nunca varria e tão pouco aproveitara convenientemente. Sentia falta do clamor das ruas, da sombra. Sentia falta da vizinhança ensandecida. Sentia um peso negro, um vazio na alma – a consciência de se ter aburguesado.

Passados dois meses, mandou empacotar a mobília e regressou ao seu velho apartamento.

No meio disto tudo, o que me espanta é que os vizinhos deram pela falta dele. A velhota da mercearia disse-lhe, de lágrima ao canto do olho, que tivera saudades, que aquilo sem ele não era igual, que parecia que faltava ali qualquer coisa. Vá-se lá saber porquê.

Quanto às duas senhoras, o meu amigo poeta foi igualmente célere a resolver o assunto. Escreveu-lhes a dizer que estava farto daquela proxenetice. Que a arte que praticava era superior àquela brincadeira de mau gosto. Que agradecia, mas estava farto de se sentir o Lulu das honradas senhoras. Enviou a carta juntamente com o último cheque que recebera e não teve mais notícias delas.

O meu amigo poeta, contudo, não era burro nenhum. Antes de lhes devolver o dinheiro, deu conta de todas as despesas que tivera com as duas mudanças. No final, dirigiu-se ao restaurante mais caro da cidade. Ainda que não o soubessem, a última coisa que as duas mecenas proporcionaram ao meu amigo poeta foi um bife mal passado com batatas fritas.

Sem comentários:

Enviar um comentário