Decidiu certo dia o meu amigo poeta, numa
altura em que a sua vida profissional lhe permitia viver menos aflito com as suas
economias, que ia mudar-se.
Talvez dizer que a sua vida profissional
corria de feição seja pouco acertado. Na verdade, duas senhoras abastadas
decidiram patrocinar a criação do meu amigo poeta. Os motivos, como será fácil
adivinhar, não eram os mais nobres. Gostavam de ostentar aquilo como uma espécie
de título nobiliárquico. A partir daquele momento, eram mecenas. Coisa chique,
portanto, que compensava sem dificuldade a pequena esmola que dispensavam todos
os meses ao meu amigo poeta.
Perdão. Divago. Regressemos ao assunto.
O meu amigo poeta, vendo-se assim numa situação
de inesperada abastança, decidiu que era altura de mudar o seu domicílio.
Queria uma casa maior numa rua mais calma.
Queria morar num edifício cujas paredes não estivessem permanentemente a
descascar-se. Queria uma casa arejada, um sítio onde, apesar dos seus
deploráveis hábitos de higiene domiciliária, o ar não ganhasse aquela
desconfortável densidade característica do excesso de pó em suspensão.
Apesar de nunca o ter admitido, creio que um
certo medo se apossara dele. Talvez medo seja pouco. Talvez seja mais exacto
dizer que andava apavorado. Lembro-me de o ver tornar-se, nessa altura, mais
sério e reservado do que o habitual. Nessa semana, ocorreram duas rixas na sua
rua. Uma delas terminara à navalhada. Portanto, apoquentava-o a perspectiva de
levar também uma naifada no bucho.
Acabou mesmo por mudar-se para um apartamento
mais caro, numa rua mais tranquila de uma zona mais segura. Cheguei a visitá-lo
para ver a casa. Mandou vir dois sofás. Trocou uma das suas mesas decrépitas
por uma novinha em folha. O seu novo domicílio era espaçoso, arejado, bem
iluminado. Os acabamentos eram impecáveis. Era uma casa de fazer inveja a muita
gente.
Mas o meu amigo poeta não aguentou.
Aquilo não era para ele. Não conseguiu
escrever uma única linha na sua casa nova. Papéis amarrotados com frases a meio
amontoavam-se pelos cantos. Sentia falta do escuro, do sujo, da velha varanda
que nunca varria e tão pouco aproveitara convenientemente. Sentia falta do
clamor das ruas, da sombra. Sentia falta da vizinhança ensandecida. Sentia um
peso negro, um vazio na alma – a consciência de se ter aburguesado.
Passados dois meses, mandou empacotar a
mobília e regressou ao seu velho apartamento.
No meio disto tudo, o que me espanta é que os
vizinhos deram pela falta dele. A velhota da mercearia disse-lhe, de lágrima ao
canto do olho, que tivera saudades, que aquilo sem ele não era igual, que
parecia que faltava ali qualquer coisa. Vá-se lá saber porquê.
Quanto às duas senhoras, o meu amigo poeta foi
igualmente célere a resolver o assunto. Escreveu-lhes a dizer que estava farto
daquela proxenetice. Que a arte que praticava era superior àquela brincadeira
de mau gosto. Que agradecia, mas estava farto de se sentir o Lulu das honradas
senhoras. Enviou a carta juntamente com o último cheque que recebera e não teve
mais notícias delas.
O meu amigo poeta, contudo, não era burro
nenhum. Antes de lhes devolver o dinheiro, deu conta de todas as despesas que
tivera com as duas mudanças. No final, dirigiu-se ao restaurante mais caro da
cidade. Ainda que não o soubessem, a última coisa que as duas mecenas proporcionaram
ao meu amigo poeta foi um bife mal passado com batatas fritas.
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