O meu amigo poeta distraía-se com facilidade.
Não estranhei por isso que certa tarde, ao vê-lo irromper pelo café com os
cabelos completamente desgrenhados, de olhos raiados de vermelho, sentando-se e
clamando por um bitoque perante a estupefacção da restante clientela, o surto
se devesse ao facto de ter perdido outra vez as chaves de casa. Era coisa que
lhe acontecia com frequência. Por vezes, reapareciam semanas depois, outra vez
demoravam mais alguns meses a ser encontradas. O recorde era de dois anos e
quatro meses. E pronto. Acontecera novamente. Dessa vez, contudo, o meu amigo
poeta também não tinha pago a conta do telefone. Vira-se assim obrigado a
passar duas semanas a comer atum e salsichas enlatados, até ao momento em que a
senhoria lhe veio exigir, como era hábito, que lhe pagasse a renda que tinha em
atraso.
“Estava a ver que a velha nunca mais chegava”,
comentou ele, “já só lá tenho uma latita de feijão…”
Numa outra tarde, pouco tempo depois, viu-se o
meu amigo poeta envolvido na conversa mais aborrecida do mundo. Estava rodeado
de um conjunto dos seus admiradores (na sua maioria, aspirantes a poetas,
amantes das artes com prateleiras repletas de colecções de Eça de Queirós,
Fernando Pessoa e Alexandre Herculano, e outros exemplares dessa estranha
espécie que vê a poesia como coisa
finíssima) e parecia não haver forma de os tipos pararem debitar
frivolidade atrás de frivolidade. Tentou distrair-se, mas, dessa vez, não conseguiu.
Aproveitando com agilidade uma das raras pausas da tertúlia, contou-lhes a
história das duas semanas em que fora prisioneiro no seu próprio domicílio. Os
seus admiradores, claro, adoraram o relato. Coisa que o deve ter irritado ainda
mais, porque, ao contar-me o episódio, o meu amigo poeta confidenciou-me que
pensou para consigo que tinha de fazer uma reciclagem urgente ao seu séquito.
Depois concluiu:
“Às vezes, tenho saudades desses tempos”,
disse ele, sorrindo placidamente, enquanto passava os olhos pela plateia. Não
se despediu. Pôs-se de pé e foi-se embora com a maior das despreocupações.
Claro que os admiradores do meu amigo poeta
não perceberam que se estava a referir ao prazer que a sua companhia lhe
inspirava. Continuavam a adorá-lo tanto como antes.
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