09 agosto 2012

o meu amigo poeta (II)

II

Não deve haver muitas maneiras de começar pior um ano novo.

Acordar num sofá desconhecido, num salão desconhecido. Ter o corpo pastoso, entorpecido e a sensação de se ser mais velho do que realmente se é. Ser um objecto pesado, perro, agredido pela luz solar, envolvido num despertar convulsivo e confuso. Mal ergui o tronco, a cabeça começou a latejar. Uma dor aguda, localizada, invasiva. Como se o meu crânio estivesse demasiado cheio. Sentia-me sujo, pegajoso. Parecia que alguma coisa tinha secado sobre a minha pele durante o sono, formando uma espécie de película.

E sede, deus do céu. Tinha tanta sede.

Quando olhei à minha volta, os meus olhos demoraram a focar. Houve um instante em que as formas que me envolviam pareciam não ter contornos, estavam esbatidas no ar, diluídas na claridade agressiva que se alastrava pelo espaço. Depois olhei para baixo, vi as minhas pernas sobre o sofá, à esquerda o limite do sofá e, à direita, um monte de casacos empilhados de onde se ergueram dois braços. Sim, como num filme de vampiros ou zombies, dois braços surgindo esticados num acordar violento. Depois uma cabeça, um tronco. Um rosto dominado por uma expressão perdida. Não o reconheci imediatamente.

As peças do puzzle que era a noite anterior começaram a juntar-se enquanto nos olhávamos, incrédulos, dois estranhos que acordam no mesmo sofá sem saber como. Era ele, o poeta. O mesmo da noite anterior.

Fechou os olhos e levou as mãos à cabeça. Gemeu. Grunhiu. O rosto contorceu-se numa expressão de mal-estar absoluto.

“Foda-se, Jesus, minha nossa senhora”, disse ele, “como é que eu vim aqui parar, caralho?”

Olhou para baixo, apalpando o corpo para ver se estava inteiro. Começou à procura de qualquer coisa dentro do casaco. Parecia desesperado. Com gestos frenéticos, revolvia violentamente os bolsos do casaco, das calças, da camisa. Apesar de ter procurado pelo menos três vezes em cada bolso, o exercício completo não deve ter durado mais que quarenta segundos.

Lá desistiu. Abanou a cabeça para os lados, desanimado. Só depois olhou para mim.

“Lembro-me de si”, disse ele, com o indicador esticado na minha direcção. “Você viu o meu caderno?”

“Não, não vi”, disse eu.

“Lembra-se do que aconteceu?”, perguntou ele. “Não me lembro de nada. Quer dizer, de quase nada… É que o seu rosto é-me familiar.”

“Não, não me lembro”, respondi.

“Merda. Mais um.”

“Mais um?”

“Mais um poema. Se fosse juntar todos os que já perdi assim, tinha material para quatro livros ou mais.”

Parou de falar por instantes. Depois teve um pequeno espasmo. Uma expressão de incómodo instalou-se-lhe no rosto.

“Sabe onde é a casa de banho?”

“Sim, é já ali à…”

Ia a meio da frase quando ele vomitou no meio do chão.

“Merda”, disse ele enquanto recuperava o fôlego, “tenho de arranjar uma mulher rapidamente.”

Depois começou a respirar outra vez com mais força. Vomitou novamente.

Eu via aquilo tudo a sair da boca dele, escancarada, e começava a sentir-me mal disposto. Senti também um espasmo. Foi a minha vez. Saiu tudo numa só rajada. Um vómito prolongado, poderoso. O estômago a revolver-se como se o seu interior estivesse a tentar escapar cá para fora. Era avermelhado, granulado, com relevos inesperados de aspecto esponjoso, e estava ali à minha frente, no chão. O do poeta era amarelo e tinham espuma nalgumas partes.

Olhámos um para o outro. Mantivemo-nos sérios por um ou dois segundos, mas depois largámos a rir às gargalhadas. Ele parou de rir, por momentos, e vomitou outra vez. Estava a limpar a cara quando se virou para mim, a sorrir, e disse, como se estivesse num filme:

“Pressinto o início de uma bela amizade.”

Acabámos por passar lá o dia. Eu, o poeta, o Bertinho, mais dois gajos e duas gajas que pareciam ter dormido juntos. Não os quatro ao mesmo tempo, mas sim dois em cada cama. Embora o contrário também não fosse de estranhar naquelas ocasiões. O Bertinho providenciou um lanche ajantarado e mais copos. Ainda não era noite e já estávamos bêbedos outra vez.

Eu e o poeta tornámo-nos imediatamente amigos. Não é que tivéssemos assim tanto em comum. Era mais como se partilhássemos uma linguagem comum. Uma espécie de código, uma certa maneira de olhar para as coisas, de ver o mundo. Ainda hoje não consigo explicar muito bem porque é que se gerou entre nós uma afinidade tão grande.

O facto é que fiz um amigo. Um bom amigo, como o tempo se encarregou de demonstrar em variadas ocasiões.

Bem vistas as coisas, não era uma maneira assim tão má de começar o ano.

Sem comentários:

Enviar um comentário