08 maio 2014

o meu amigo poeta (XXXVIII)

Quando o meu amigo poeta acordou, estranhou primeiro o cheiro a tabaco. Doía-lhe a cabeça, o que não era de estranhar. Estava deitado, sozinho numa cama de casal cujos lençóis estavam completamente revolvidos. O quarto ostentava as marcas de uma ocupação recente. Havia duas malas de viagem ainda por abrir, a mobília reduzia-se ao essencial e não existia ali decoração alguma.

Rita, de roupão, estava sentada em frente à mesa vazia a terminar o café enquanto fumava um cigarro. O meu amigo poeta viu-a. Depois levantou o lençol. Estava nu. Pedaços da noite anterior vieram-lhe à cabeça e lá acabou por perceber porque é que estava ali.

Levantou-se com muito cuidado e avançou na direcção dela, muito devagarinho, nos bicos dos pés. Beijou-a na parte de trás do pescoço, ao de leve. Ela assustou-se. Com um pulo, voltou-se para trás, de boca aberta.

Depois, falaram os dois ao mesmo tempo:

Bom dia”, disse o meu amigo poeta, armado em don Juan, em tom muito suave.

Estás parvo?”, gritou ela, enfurecida.

Olharam-se por um momento, cada qual pasmado com a reacção do outro. Rita foi a primeira a recompor-se.

Pisga-te”, disse ela, “tenho montes de coisas para fazer.”

O meu amigo poeta ficou indignado.

Desculpe?...”, protestou ele.

Que é que foi? Ontem à noite foi ontem à noite. Já passou. Hoje é outro dia.
Não sou grande apreciadora de beijinhos no dia seguinte.”

O meu amigo poeta não sabia o que dizer. Estava nu, de pé, em frente a ela, e não se lembrava completamente do desfecho da noite anterior. Sentia-se desorientado, desarmado. Rita, satisfeita com o efeito das suas palavras, deu uma passa no cigarro.

A porta é ali”, disse ela, de braço estendido.

O meu amigo poeta ouviu aquilo e rosnou, mas não disse nada. Apanhou a sua roupa do chão, sentou-se no lado da cama e começou a vestir-se.
Estava já a abotoar a camisa, que estava toda manchada, quando se voltou para ela. Falou-lhe num tom frio:

O mínimo que se faz depois de fazer amor com alguém é oferecer-lhe um café pela manhã.”

Rita riu-se.

Não quando essa pessoa adormece em cima de ti”, respondeu ela. E acrescentou, marcando bem as palavras: “Não depois de fazer amor, mas durante.”

O meu amigo poeta pensou durante um instante antes de responder:

Se calhar, estava aborrecido.”

Rita bufou. O rosto começava a corar de raiva. A respiração tornava-se pesada.

Se calhar, estavas bêbado.”

O meu amigo poeta desistiu da discussão. Vestiu-se e, com um passe bem dos mais azedos, abriu a porta e foi-se embora. Ligou-me para passar no café e, à tarde, contou-me o que se tinha passado. Apesar de tudo, o seu orgulho de macho estava em grande.

Já viste isto?”, disse ele, sorridente, “adormeci em cima dela!”

E ria-se que nem um perdido. Falou daquilo durante montes de tempo. Começava a tornar-se difícil aturá-lo. Depois, chegou o Mendonça e contou-nos que se tinha deitado com a outra. Descreveu tudo com um grau de detalhe que me pareceu um pouco escusado, exaltando sempre que podia os seus dotes na arte do amor físico.


Pelo menos, o meu amigo poeta calou-se.

Sem comentários:

Enviar um comentário