01 maio 2014

o meu amigo poeta (XXXVI)

Decorreu, nessa estranha noite, um fenómeno chocante: o meu amigo poeta dançou. Sim, o meu amigo poeta dançou. O meu amigo poeta, que nunca dançava, pois abundavam os motivos para não o fazer. O maior pé de chumbo à face do planeta, capaz de elevar o conceito de descoordenação motora a patamares até então desconhecidos pela espécie humana, e cujo sentido de ritmo podia ser descrito muito facilmente, porque simplesmente não existia, dançou. O que talvez não seja o melhor termo para descrever o modo como o corpo do meu amigo poeta se move quando este ouve música, mas, enfim, à falta de outro verbo, admitamos que ele dançou. E tudo, claro, por causa de uma mulher: Rita.

Primeiro, convidou-o, mas o meu amigo poeta negou-se a pisar sequer a pista de dança:
Não há mal nenhum. Vá lá, que eu fico aqui à espera.”

Rita não foi, mas também não era mulher para aceitar um não como resposta assim tão facilmente. Mudou de estratégia. Desafiou-o. Troçou da sua falta de coragem. Contudo, o meu amigo poeta parecia resoluto:

Não”, disse ele, “de modo algum”.

Rita, claro, não abdicou. Pedinchou. Fez chantagem emocional. Fingiu que estava triste. Que precisava de se animar um pouco. Que a sua vida não andava grande coisa. Truques baixos, portanto. E o meu amigo poeta caiu que nem um patinho. Quando deu por si, o slow que lhe tinha prometido transformou-se em sonoridades mais mexidas. Quanto a Rita, segundo disse depois, divertiu-se que nem uma doida a vê-lo naqueles desmandos, sobretudo quando a figura de urso dançante que o meu amigo poeta fazia atingiu o seu píncaro, ao som da adequadíssima dancing fool de Frank Zappa. Para que o caro leitor possa ter noção do nível de arrojo que atingiu, o facto de o Mendonça me ter depois contado que o viu em cima de uma das colunas da discoteca a tocar o solo de guitarra num instrumento imaginário deve ser suficiente.

A música acabou quase de manhã, encerrando finalmente o triste espectáculo que o meu amigo poeta protagonizara.

Bem, parece que vamos embora”, disse ele tristemente, antecipando já o cair a pique de toda aquela euforia.

Pois”, disse Rita.

Foram à procura do Mendonça. O meu amigo poeta precisava de boleia e tinha calhado a Mendonça a tarefa de o transportar. Havia apenas um problema nesse plano. O Mendonça já não estava na discoteca, mas sim no seu atelier, com a outra amiga. O que não era de espantar, pois era um engodo que usava com frequência junto das fêmeas que despertavam o seu interesse. Elas tinham sempre de ver, oh sim, absolutamente, tinham mesmo de ver as esculturas para perceberem melhor.

Que merda”, lamentou-se o meu amigo poeta, já à porta do estabelecimento, imaginando a longa caminhada que agora teria de fazer.

Não faz mal”, disse Rita. “Eu levo-te. O meu carro não está assim tão longe.”


Ele sentiu-se um pouco embaraçado com aquilo. Não lhe apetecia muito terminar a noite a dar-lhe trabalho e, por qualquer motivo, vieram-lhe à cabeça as formas mais terríveis de aquele encontro chegar a um desfecho. Mas a escolha entre fazer aqueles quilómetros todos a pé, ou confortavelmente sentado no interior de um automóvel na companhia de Rita não era muito difícil. E o meu amigo poeta agradeceu e aceitou.

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