Decorreu, nessa estranha noite,
um fenómeno chocante: o meu amigo poeta dançou. Sim, o meu amigo
poeta dançou. O meu amigo poeta, que nunca dançava, pois abundavam
os motivos para não o fazer. O maior pé de chumbo à face do
planeta, capaz de elevar o conceito de descoordenação motora a
patamares até então desconhecidos pela espécie humana, e cujo
sentido de ritmo podia ser descrito muito facilmente, porque
simplesmente não existia, dançou. O que talvez não seja o melhor
termo para descrever o modo como o corpo do meu amigo poeta se move
quando este ouve música, mas, enfim, à falta de outro verbo,
admitamos que ele dançou. E tudo, claro, por causa de uma mulher:
Rita.
Primeiro, convidou-o, mas o meu
amigo poeta negou-se a pisar sequer a pista de dança:
“Não há mal nenhum. Vá lá,
que eu fico aqui à espera.”
Rita não foi, mas também não
era mulher para aceitar um não como resposta assim tão facilmente.
Mudou de estratégia. Desafiou-o. Troçou da sua falta de coragem.
Contudo, o meu amigo poeta parecia resoluto:
“Não”, disse ele, “de modo
algum”.
Rita, claro, não abdicou.
Pedinchou. Fez chantagem emocional. Fingiu que estava triste. Que
precisava de se animar um pouco. Que a sua vida não andava grande
coisa. Truques baixos, portanto. E o meu amigo poeta caiu que nem um
patinho. Quando deu por si, o slow que lhe tinha prometido
transformou-se em sonoridades mais mexidas. Quanto a Rita, segundo
disse depois, divertiu-se que nem uma doida a vê-lo naqueles
desmandos, sobretudo quando a figura de urso dançante que o meu
amigo poeta fazia atingiu o seu píncaro, ao som da adequadíssima
dancing fool
de Frank Zappa. Para que o caro leitor possa ter noção do nível de
arrojo que atingiu, o facto de o Mendonça me ter depois contado que
o viu em cima de uma das colunas da discoteca a tocar o solo de
guitarra num instrumento imaginário deve ser suficiente.
A música acabou quase de manhã,
encerrando finalmente o triste espectáculo que o meu amigo poeta
protagonizara.
“Bem, parece que vamos embora”,
disse ele tristemente, antecipando já o cair a pique de toda aquela
euforia.
“Pois”, disse Rita.
Foram à procura do Mendonça. O
meu amigo poeta precisava de boleia e tinha calhado a Mendonça a
tarefa de o transportar. Havia apenas um problema nesse plano. O
Mendonça já não estava na discoteca, mas sim no seu atelier,
com a outra amiga. O que não era de espantar, pois era um engodo que
usava com frequência junto das fêmeas que despertavam o seu
interesse. Elas tinham sempre de ver, oh sim, absolutamente, tinham
mesmo de ver as esculturas para perceberem melhor.
“Que merda”, lamentou-se o
meu amigo poeta, já à porta do estabelecimento, imaginando a longa
caminhada que agora teria de fazer.
“Não faz mal”, disse Rita.
“Eu levo-te. O meu carro não está assim tão longe.”
Ele sentiu-se um
pouco embaraçado com aquilo. Não lhe apetecia muito terminar a
noite a dar-lhe trabalho e, por qualquer motivo, vieram-lhe à cabeça
as formas mais terríveis de aquele encontro chegar a um desfecho.
Mas a escolha entre fazer aqueles quilómetros todos a pé, ou
confortavelmente sentado no interior de um automóvel na companhia de
Rita não era muito difícil. E o meu amigo poeta agradeceu e
aceitou.
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