29 novembro 2012

o meu amigo poeta (XXXII)


A segunda vez que o meu amigo poeta pôs os olhos naquela mulher coincide com a primeira vez que eu a vi. Já não sei bem a que propósito, mas estávamos a jantar em casa do Mendonça. Até ali, nem eu, nem o meu amigo tínhamos participado muito activamente nas conversas, pelo simples motivo de que estas eram aborrecidíssimas. Um colega de curso do Mendonça ia monopolizando a tertúlia, proferindo banalidade atrás de banalidade. Era um tipo com uma camisa indescritível, pois continha nuances de todas as cores do arco-íris num padrão muito pouco agradável. As pontas do bigode fino e engomado apontavam para cima e os pequenos óculos quadrados não ajudavam.

Um discurso particularmente enfadonho que o sujeito fez versava sobre a bossa nova e a sua incrível beleza exótica, mas também se fartou de comentar muitas outras coisas que considerava de valor artístico extremamente elevado, e relativamente às quais eu e o meu amigo poeta não podíamos estar mais desinteressados. O resto do tempo, como já seria de esperar, uma vez que se tratava de um artista, passou-o a discursar sobre a sua própria obra, num tom de auto-elogio verdadeiramente embaraçoso. Recordo-me, por exemplo, de o ter ouvido dizer que achava a forma como o surrealismo afectara a progressão da sua obra um processo positivamente fascinante. Resumindo, já não o podíamos ouvir. Apenas Elisa, uma donzela com ar de barbie, dotada de um par de pernas exemplar e pouca massa cinzenta, o continuava a ouvir embevecida, contentíssima por poder privar com um verdadeiro criador.

Quanto ao meu amigo poeta, por vezes não conseguia evitar soltar alguns rosnados, felizmente em tom baixo, mas lá se continha, optando por encher de novo o seu copo de vinho e voltar novamente o seu olhar para o peixe grelhado que tinha diante de si, evitando assim contemplar o triste espectáculo que se desenrolava à sua frente. E, quanto a mim, fez muito bem. Dadas as condições, o peixe e o vinho eram mesmo as únicas coisas que se aproveitavam ali.

Até que a campainha e Mendonça se ergueu de repente, certamente agradado com a possibilidade de deixar de ouvir o seu colega durante alguns segundos.

“Ah! Deve ser o Ramalho! Só um momento…”

Desapareceu da sala para ir abrir a porta. O seu colega aproveitou para referir que já há muito que não participava numa tertúlia tão interessante, ao que o meu amigo poeta respondeu com um aceno de cabeça pouco convicto antes de voltar a olhar para o prato e espetar o garfo com força contra o lombo do peixe, sobressaltando-me.

Depois, o Mendonça regressou. Com ele vinha também o Ramalho, que também já conhecíamos. Dava aulas de filosofia. Com eles, entrou ainda uma mulher de quarenta e poucos anos, cabelo curto, magra. Tinha feições severas, um pouco masculinas para meu gosto, e uma pose algo rígida. Creio que, já nesse momento, não gostei dela. Mas reparei que o meu amigo poeta corou quando a viu entrar.

O Mendonça, empenhado no seu papel de anfitrião, tratou de fazer as apresentações. A mulher chamava-se Rita. Quando Mendonça apresentou o meu amigo poeta, Rita interrompeu-o.

“Nós já nos conhecemos…”, disse ela, com uma inflexão interrogativa, como se à espera de uma confirmação.

“Parece que sim”, respondeu o meu amigo poeta.

“Já sei”, disse ela, “a tabacaria.”

“Pois”, disse o meu amigo poeta, com um sorriso amarelo, “a tabacaria.”

“Conseguiu ler aquilo tudo?”

O meu amigo poeta não chegou a responder. O Mendonça, que não tinha percebido nada, interrompeu-o:

“Claro que sim. Este aqui lê que nem um desalmado.” E acrescentou, em tom mais sério, como se explicasse o que acabara de dizer: “ele é poeta.”

“Que interessante”, disse Rita, com uma pontinha de sarcasmo que quase ninguém percebeu.

“Não é nada interessante, menina”, disse o meu amigo poeta. “Chegou a comprar os cachimbos?”

“Não, não. Não sei se lhe cheguei a dizer, mas não fumo cachimbo.”

Depois, sentaram-se os três. O resto da refeição decorreu tal como estava a decorrer antes. Verificava-se apenas uma pequena mudança. Enquanto o escultor falava, o meu amigo poeta olhava menos para o peixe e observava de soslaio aquela mulher. Para minha surpresa, ela olhava-o também.

Sem comentários:

Enviar um comentário