Segundo me contou, anos depois, o meu amigo
poeta, conheceram-se numa tabacaria. Disse-me ainda que o dia era cinzento, que
o ar tinha aquela densidade de antes das tempestades, que o céu estava tapado
de nuvens cor de chumbo. Talvez se tratasse de uma coincidência feliz. Um
momento de alinhamento perfeito entre o clima e um acontecimento, como uma
espécie de anúncio do que estaria para acontecer. De facto, desde esse primeiro
momento, talvez a relação amorosa do meu amigo poeta e Rita pudesse ser
definida precisamente nos mesmos moldes: guerra o tempo todo.
Nessa sexta-feira abafada, o meu amigo poeta
aproximou-se da caixa, depois de cuidadosamente ter feito as suas escolhas de
leitura. Trazia debaixo do braço três periódicos: um diário, um semanário e uma
revista pornográfica que saía de três em três meses, cuidadosamente envolvida
pelas outras duas publicações, para que a restante freguesia não pudesse saber
do conteúdo das mesmas. Estava já a pegar na carteira para efectuar o
pagamento, quando o seu corpo chocou contra outro corpo e, no instante do impacto,
os jornais e as revistas se espalharam no meio do chão da tabacaria.
A mulher com quem embatera nem sequer se tinha
apercebido do embaraço do meu amigo poeta quando bradou, em tom severo:
“Veja lá por onde anda!”
“Eu?!?”, ripostou, flamejante, o meu amigo
poeta. “E você? Não podia ter um pouco mais de cuidado? E de respeito, já
agora?”
Seguiu-se um instante tão cómico quanto tenso.
Os dois olharam-se, de pé, muito quietos, dominados por uma imensa raiva,
enquanto entre eles, a imagem de uma mulher de pernas abertas se exibia perante
o resto da clientela. Pareciam dispostos a prolongar aquele combate de olhares
até ao fim dos tempos. Como se qualquer um deles pudesse acabar com a
existência do outro limitando-se a mirá-lo.
Visivelmente indignado, o meu amigo poeta lá
desistiu do duelo, dedicando-se a apanhar o que lhe tinha caído ao chão.
“Vá. Passe. Cedo-lhe a vez”, resmungava ele
enquanto se entretinha a reorganizar aquela embrulhada toda.
Ela não se fez rogada. Nem respondeu. Comprou
uma quantidade impensável de tabaco de diferentes marcas e categorias. A
empregada movimentava-se atrás do balcão, nervosa e atarefada, à procura do
tabaco enrolado, do tabaco de enrolar, das mortalhas, dos filtros e,
finalmente, dos isqueiros.
O meu amigo poeta, que estava atrás dela, viu
naquilo uma oportunidade de se vingar.
“Não precisa de mais nada?”, perguntou ele.
“Parece-me que se esqueceu dos cachimbos.” E, apesar de ser ali o único a
fazê-lo, não se conteve na hora de começar a rir-se às gargalhadas no meio
daquele cenário cada vez mais carregado.
Ela, contudo, não perdeu a compostura. Não era
de se deixar ficar face a semelhante atentado.
“Tenha lá um bocadinho de paciência”, disse
ela, num tom artificialmente calmo, “já o deixo ir para casa bater a sua
punheta enquanto se baba para cima das imagens das meninas.”
Mal o disse, saiu do estabelecimento. A pose
altiva e segura sugeria que o episódio pouco ou nada a afectara.
O meu amigo poeta comportou-se de forma
parecida. Pagou o que levava debaixo do braço com a maior dignidade que
conseguiu reunir e foi à sua vida.
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