22 novembro 2012

o meu amigo poeta (XXXI)



Segundo me contou, anos depois, o meu amigo poeta, conheceram-se numa tabacaria. Disse-me ainda que o dia era cinzento, que o ar tinha aquela densidade de antes das tempestades, que o céu estava tapado de nuvens cor de chumbo. Talvez se tratasse de uma coincidência feliz. Um momento de alinhamento perfeito entre o clima e um acontecimento, como uma espécie de anúncio do que estaria para acontecer. De facto, desde esse primeiro momento, talvez a relação amorosa do meu amigo poeta e Rita pudesse ser definida precisamente nos mesmos moldes: guerra o tempo todo.

Nessa sexta-feira abafada, o meu amigo poeta aproximou-se da caixa, depois de cuidadosamente ter feito as suas escolhas de leitura. Trazia debaixo do braço três periódicos: um diário, um semanário e uma revista pornográfica que saía de três em três meses, cuidadosamente envolvida pelas outras duas publicações, para que a restante freguesia não pudesse saber do conteúdo das mesmas. Estava já a pegar na carteira para efectuar o pagamento, quando o seu corpo chocou contra outro corpo e, no instante do impacto, os jornais e as revistas se espalharam no meio do chão da tabacaria.

A mulher com quem embatera nem sequer se tinha apercebido do embaraço do meu amigo poeta quando bradou, em tom severo:

“Veja lá por onde anda!”

“Eu?!?”, ripostou, flamejante, o meu amigo poeta. “E você? Não podia ter um pouco mais de cuidado? E de respeito, já agora?”

Seguiu-se um instante tão cómico quanto tenso. Os dois olharam-se, de pé, muito quietos, dominados por uma imensa raiva, enquanto entre eles, a imagem de uma mulher de pernas abertas se exibia perante o resto da clientela. Pareciam dispostos a prolongar aquele combate de olhares até ao fim dos tempos. Como se qualquer um deles pudesse acabar com a existência do outro limitando-se a mirá-lo.

Visivelmente indignado, o meu amigo poeta lá desistiu do duelo, dedicando-se a apanhar o que lhe tinha caído ao chão.

“Vá. Passe. Cedo-lhe a vez”, resmungava ele enquanto se entretinha a reorganizar aquela embrulhada toda.
Ela não se fez rogada. Nem respondeu. Comprou uma quantidade impensável de tabaco de diferentes marcas e categorias. A empregada movimentava-se atrás do balcão, nervosa e atarefada, à procura do tabaco enrolado, do tabaco de enrolar, das mortalhas, dos filtros e, finalmente, dos isqueiros.

O meu amigo poeta, que estava atrás dela, viu naquilo uma oportunidade de se vingar.

“Não precisa de mais nada?”, perguntou ele. “Parece-me que se esqueceu dos cachimbos.” E, apesar de ser ali o único a fazê-lo, não se conteve na hora de começar a rir-se às gargalhadas no meio daquele cenário cada vez mais carregado.

Ela, contudo, não perdeu a compostura. Não era de se deixar ficar face a semelhante atentado.

“Tenha lá um bocadinho de paciência”, disse ela, num tom artificialmente calmo, “já o deixo ir para casa bater a sua punheta enquanto se baba para cima das imagens das meninas.”

Mal o disse, saiu do estabelecimento. A pose altiva e segura sugeria que o episódio pouco ou nada a afectara.

O meu amigo poeta comportou-se de forma parecida. Pagou o que levava debaixo do braço com a maior dignidade que conseguiu reunir e foi à sua vida.

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