16 agosto 2012

o meu amigo poeta (V)


A forma como o meu amigo poeta lidava com a escrita foi mudando com o passar do tempo. O que começou por ser um processo irregular e verdadeiramente compulsivo, acabou por transformar-se gradualmente num hábito sabiamente domado, num processo que conseguia gerir sem que a coisa perdesse a sua naturalidade.

No princípio é que foi mesmo o diabo. Acontecia com igual frequência o meu amigo poeta ficar sem escrever durante semanas a fio e ser assaltado por surtos que o forçavam a passar dias inteiros fechado em casa a escrever.

Dois ou três anos depois de o ter conhecido, viu-se o meu amigo poeta de um desses violentos ataques da musa. Passaram-se semanas em que ninguém lhe pôs os olhos em cima, porque estava enfiado em casa a escrever os seus míticos Passeios em liberdade, a sua ode à independência de espírito, do corpo e dos comportamentos, um elogio das liberdades da carne e do espírito, conforme me confidenciou depois, obra cuja génese derivava directamente do facto de vivermos à época sob o jugo da ditadura. Foram mais de quarenta poemas, bastante longos, escritos de rajada, num estado de intensa fúria e permanente obsessão.

O meu amigo poeta lembra-se bem do dia em que finalmente terminou o livro. A razão é simples: quando acabou de escrever, o mundo tinha mudado: era o dia 27 de Abril de 1974.

Quando lhe falámos da revolução, quando lhe contámos tudo o que acontecera nos dias anteriores, ficou num estado indescritível. Parecia estar prestes a explodir e a implodir ao mesmo tempo. Tremia que nem varas verdes, saiu do café para dar pontapés num caixote do lixo e tudo. Além de ter perdido o acontecimento pelo qual todos ansiávamos, o meu amigo poeta via agora os seus mais ricos poemas reduzidos a uma condição de quase inutilidade, em virtude da radical mudança do contexto a que se referiam.

Enfiou-se outra vez em casa. Todos rejubilavam com as conquistas de Abril, menos o meu amigo poeta. Sentia-se posto de lado, humilhado pela má fortuna, ostracizado pelo mundo que o rodeava. Queimou os poemas todos e, apesar da tentação por vezes se fazer sentir, nunca mais escreveu o elogio de coisa nenhuma.

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