A forma como o meu amigo poeta
lidava com a escrita foi mudando com o passar do tempo. O que começou por ser
um processo irregular e verdadeiramente compulsivo, acabou por transformar-se
gradualmente num hábito sabiamente domado, num processo que conseguia gerir sem
que a coisa perdesse a sua naturalidade.
No princípio é que foi mesmo o
diabo. Acontecia com igual frequência o meu amigo poeta ficar sem escrever
durante semanas a fio e ser assaltado por surtos que o forçavam a passar dias
inteiros fechado em casa a escrever.
Dois ou três anos depois de o ter
conhecido, viu-se o meu amigo poeta de um desses violentos ataques da musa.
Passaram-se semanas em que ninguém lhe pôs os olhos em cima, porque estava
enfiado em casa a escrever os seus míticos Passeios
em liberdade, a sua ode à independência de espírito, do corpo e dos comportamentos,
um elogio das liberdades da carne e do espírito, conforme me confidenciou
depois, obra cuja génese derivava directamente do facto de vivermos à época sob
o jugo da ditadura. Foram mais de quarenta poemas, bastante longos, escritos de
rajada, num estado de intensa fúria e permanente obsessão.
O meu amigo poeta lembra-se bem
do dia em que finalmente terminou o livro. A razão é simples: quando acabou de
escrever, o mundo tinha mudado: era o dia 27 de Abril de 1974.
Quando lhe falámos da revolução, quando
lhe contámos tudo o que acontecera nos dias anteriores, ficou num estado
indescritível. Parecia estar prestes a explodir e a implodir ao mesmo tempo.
Tremia que nem varas verdes, saiu do café para dar pontapés num caixote do lixo
e tudo. Além de ter perdido o acontecimento pelo qual todos ansiávamos, o meu
amigo poeta via agora os seus mais ricos poemas reduzidos a uma condição de
quase inutilidade, em virtude da radical mudança do contexto a que se referiam.
Enfiou-se outra vez em casa.
Todos rejubilavam com as conquistas de Abril, menos o meu amigo poeta.
Sentia-se posto de lado, humilhado pela má fortuna, ostracizado pelo mundo que
o rodeava. Queimou os poemas todos e, apesar da tentação por vezes se fazer
sentir, nunca mais escreveu o elogio de coisa nenhuma.
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