Naquela tarde, encontrei o meu amigo poeta a
ler no café. O que não tem nada de especial, visto que o café era um dos seus
locais de leitura predilectos. Já a forma como estava a ler era mais
particular: sempre que chegava o momento de voltar uma página, o meu amigo
poeta erguia o indicador à altura da boca, dava uma delicada lambidela na ponta
do dedo, e só depois virava a folha. Nunca o tinha visto fazer aquilo. No
entanto, a naturalidade do seu gesto sugeria que a sua natureza era já a de um
automatismo. Qualquer pessoa que não o conhecesse e o visse a fazer aquilo,
pensaria certamente que se tratava de um hábito antiquíssimo. Como se o meu
amigo poeta nunca antes houvesse voltado uma página sem aquele movimento
prévio.
Como não queria incomodar o meu douto
companheiro, e crendo que lá haveria de ter os seus motivos para se comportar
daquela maneira, não lhe fiz questão alguma acerca daquilo. Limitei-me a
sentar-me, pedi o meu café e pus-me a ler o jornal, como era habitual. Volta e
meia, contudo, a curiosidade levava-me a lançar um ocasional olhar de soslaio
ao meu amigo poeta. Lá estava ele. Levava o dedo à boca, dava-lhe a lambidela,
voltava a página. Aquilo intrigava-me, mas decidi ainda assim não perguntar
nada ao meu amigo poeta. Sabia que era bem possível que me respondesse com maus
modos e, sinceramente, não me apetecia estar ali a envolver-me em pequenos
feudos com ele.
Pouco depois, chegou o Mendonça e sentou-se
também. Era pintor. Trazia sempre o seu caderno de esboços debaixo do braço,
uma expressão aluada no rosto e a farta cabeleira encaracolada nas mais
improváveis disposições. Nunca se penteava. Cumprimentou-nos, pediu café e
bagaço, e, enquanto os bebia, trocámos algumas impressões sobre a situação
política da altura. Fizemo-lo discretamente, como fazem as pessoas com bons
modos, apesar de nenhum de nós ser caracterizado por ter bons modos. Depois, o
Mendonça embrenhou-se nos seus esboços e tanto eu como o meu amigo poeta
retornámos às respectivas leituras.
Passou-se uma boa meia hora, pois lembro-me de
ter passado também eu da leitura do jornal para outras leituras. Provavelmente,
uma qualquer peça de teatro, formato que me entusiasmava particularmente na
altura, e pelo qual cheguei a andar obcecado. Estava a meio de um diálogo
qualquer, quando o Mendonça soltou uma gargalhada que me distraiu da tarefa. De
facto, foi um riso tão violento que chegou a assustar-me, levando-me a dar um
pequeno salto na cadeira.
“A lamber o dedo?”, perguntou ele, a rir-se
que nem um perdido.
“Que é que tem?”
Decidi intrometer-me na discussão:
“Realmente”, comecei eu, “o que é que te deu
agora para começar a lamber o dedinho antes de virar a página?”
O meu amigo poeta remeteu-se por instantes ao
silêncio. Calculo que deva ter-se sentido embaraçado.
“Opá, acho que dá um certo estilo”, acabou por
admitir.
E explicou-nos que tinha visto um gajo
qualquer a fazer aquilo noutro café. Tinha achado que o tipo tinha muita pinta
e decidiu adoptar o mesmo estilo para as suas leituras. Andou mesmo a treinar
durante alguns dias, como um actor, e agora, que se sentia verdadeiramente
capacitado para incorporar o gesto, decidira passar da pesquisa à prática.
Eu e o Mendonça ficámos parvos com o que
acabáramos de ouvir. Nunca na vida teríamos imaginado o meu amigo poeta a
perder tempo com uma preocupação tão frívola.
“E então? Dá ou não dá?”, perguntou ele.
“Dá? Dá o quê?”
O meu amigo poeta ensaiou um sorriso charmoso,
que acabou por não lhe sair bem. Respondeu:
“Uma certa pinta. Dá ou não dá?”
Houve um silêncio da nossa parte. Um silêncio
que falava por si. Eu e o Mendonça encolhemos os ombros. Ele voltou aos
desenhos e eu à leitura. O meu amigo poeta acabou por encolher também os
ombros, alguns segundos depois. Regressou à leitura.
Nunca mais o vi a lamber o dedo antes de virar
uma página.
gostei MUITO do meu amigo poeta IX: está a evoluir, a evoluir...
ResponderEliminarCaro anónimo, esperemos que eu não o desiluda nos próximos tempos. Mas é bem possível que assim aconteça ;)
ResponderEliminarObrigado pelo comentário.