23 agosto 2012

o meu amigo poeta (IX)


Naquela tarde, encontrei o meu amigo poeta a ler no café. O que não tem nada de especial, visto que o café era um dos seus locais de leitura predilectos. Já a forma como estava a ler era mais particular: sempre que chegava o momento de voltar uma página, o meu amigo poeta erguia o indicador à altura da boca, dava uma delicada lambidela na ponta do dedo, e só depois virava a folha. Nunca o tinha visto fazer aquilo. No entanto, a naturalidade do seu gesto sugeria que a sua natureza era já a de um automatismo. Qualquer pessoa que não o conhecesse e o visse a fazer aquilo, pensaria certamente que se tratava de um hábito antiquíssimo. Como se o meu amigo poeta nunca antes houvesse voltado uma página sem aquele movimento prévio.

Como não queria incomodar o meu douto companheiro, e crendo que lá haveria de ter os seus motivos para se comportar daquela maneira, não lhe fiz questão alguma acerca daquilo. Limitei-me a sentar-me, pedi o meu café e pus-me a ler o jornal, como era habitual. Volta e meia, contudo, a curiosidade levava-me a lançar um ocasional olhar de soslaio ao meu amigo poeta. Lá estava ele. Levava o dedo à boca, dava-lhe a lambidela, voltava a página. Aquilo intrigava-me, mas decidi ainda assim não perguntar nada ao meu amigo poeta. Sabia que era bem possível que me respondesse com maus modos e, sinceramente, não me apetecia estar ali a envolver-me em pequenos feudos com ele.

Pouco depois, chegou o Mendonça e sentou-se também. Era pintor. Trazia sempre o seu caderno de esboços debaixo do braço, uma expressão aluada no rosto e a farta cabeleira encaracolada nas mais improváveis disposições. Nunca se penteava. Cumprimentou-nos, pediu café e bagaço, e, enquanto os bebia, trocámos algumas impressões sobre a situação política da altura. Fizemo-lo discretamente, como fazem as pessoas com bons modos, apesar de nenhum de nós ser caracterizado por ter bons modos. Depois, o Mendonça embrenhou-se nos seus esboços e tanto eu como o meu amigo poeta retornámos às respectivas leituras.

Passou-se uma boa meia hora, pois lembro-me de ter passado também eu da leitura do jornal para outras leituras. Provavelmente, uma qualquer peça de teatro, formato que me entusiasmava particularmente na altura, e pelo qual cheguei a andar obcecado. Estava a meio de um diálogo qualquer, quando o Mendonça soltou uma gargalhada que me distraiu da tarefa. De facto, foi um riso tão violento que chegou a assustar-me, levando-me a dar um pequeno salto na cadeira.

“A lamber o dedo?”, perguntou ele, a rir-se que nem um perdido.

“Que é que tem?”

Decidi intrometer-me na discussão:

“Realmente”, comecei eu, “o que é que te deu agora para começar a lamber o dedinho antes de virar a página?”

O meu amigo poeta remeteu-se por instantes ao silêncio. Calculo que deva ter-se sentido embaraçado.

“Opá, acho que dá um certo estilo”, acabou por admitir.

E explicou-nos que tinha visto um gajo qualquer a fazer aquilo noutro café. Tinha achado que o tipo tinha muita pinta e decidiu adoptar o mesmo estilo para as suas leituras. Andou mesmo a treinar durante alguns dias, como um actor, e agora, que se sentia verdadeiramente capacitado para incorporar o gesto, decidira passar da pesquisa à prática.

Eu e o Mendonça ficámos parvos com o que acabáramos de ouvir. Nunca na vida teríamos imaginado o meu amigo poeta a perder tempo com uma preocupação tão frívola.

“E então? Dá ou não dá?”, perguntou ele.

“Dá? Dá o quê?”

O meu amigo poeta ensaiou um sorriso charmoso, que acabou por não lhe sair bem. Respondeu:

“Uma certa pinta. Dá ou não dá?”

Houve um silêncio da nossa parte. Um silêncio que falava por si. Eu e o Mendonça encolhemos os ombros. Ele voltou aos desenhos e eu à leitura. O meu amigo poeta acabou por encolher também os ombros, alguns segundos depois. Regressou à leitura.

Nunca mais o vi a lamber o dedo antes de virar uma página.

2 comentários:

  1. gostei MUITO do meu amigo poeta IX: está a evoluir, a evoluir...

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  2. Caro anónimo, esperemos que eu não o desiluda nos próximos tempos. Mas é bem possível que assim aconteça ;)

    Obrigado pelo comentário.

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