13 agosto 2012

o meu amigo poeta (IV)


Mais ou menos a partir dos trinta e cinco anos, o meu amigo poeta tornou-se reconhecido em certos círculos. 

Havia quem gostasse mesmo do que ele escrevia, mas os seus leitores encaixavam-se maioritariamente numa outra categoria. Eram pessoas suficientemente cultas para saberem fingir que compreendiam o seu trabalho, mas faziam-no por todos os motivos errados. Acabou por formar-se a dada altura uma espécie de culto ao redor dos escritos do meu amigo poeta. Mas, na sua maioria, quem gostava do que ele escrevia acabava por gostar mais da exclusividade de ser um dos poucos a conhecer a sua obra do que a obra em si.

Nunca deixou de escrever poemas. Em certos círculos, dizia-se que ficava melhor à medida que passava o tempo. “Como o vinho do porto”, dizem os entendidos da coisa, “mas com um travo mais amargo, mais sujo, e, ainda assim, terno, simples e profundamente humano”.

O meu amigo poeta, por seu turno, estava-se mais ou menos a marimbar para o assunto. Não precisava de aprovação para continuar a fazer o que gostava de fazer e, como nunca contou com o que escrevia para ganhar a vida, aproveitou muitas vezes para se divertir com situação. Tão pouco caiu no erro de alguma vez ter considerado a palavra como sagrada.

Não havia, de facto, nada sagrado para o meu amigo poeta. Bem pelo contrário. Era um dos mais empenhados fanáticos do anti-sagrado. Estava-se a cagar para a crítica e, em última análise, para os seus leitores. Tão pouco frequentava a missa ou comícios partidários. Sabia que, a partir do momento em que começasse a pensar demasiado nesse tipo de coisas, perderia a liberdade e a independência de espírito que eram para ele fundamentais.

“Sagrado?”, perguntava ele por vezes, entre goles de bagaço, ou a meio de uma sandes de pernil. “Prefiro as coisas sagradinhas. Coisas palpáveis. Como uma refeição em cima da mesa ou um orifício morno e húmido onde enfiar aquela parte do corpo que os homens têm e as mulheres não.”

Mas a verdade é que todos os dias se sentava à frente de uma folha de papel. Não era preciso que escrever fosse sagrado para que o meu amigo poeta encarasse a actividade com uma devoção de monge.

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